Glória Maria via o racismo para além do cabelo
Morta nesta quinta-feira, apresentadora, uma mulher preta pioneira, serviu de inspiração a jovens jornalistas negras
A atriz americana Viola Davis, uma das mais consagradas de sua geração, diz em seu livro “Em Busca de Mim” que só descobriu sua vocação ao ver pela primeira vez uma artista negra na tela da televisão. No Brasil, foi a imbatível Glória Maria quem assumiu esse papel de pioneirismo no jornalismo televisivo.
A apresentadora, morta nesta quinta-feira, foi uma inspiração para inúmeras mulheres negras brasileiras que, como eu, encontraram nela um propósito. Enxergar a si mesma na televisão é mesmo uma experiência transformadora.
Glória Maria foi a primeira pessoa negra a aparecer diante das câmeras no telejornalismo brasileiro. Ela foi uma mulher negra na maior emissora do país na década de 1970.
Não tem como não me lembrar da menina que, nas sextas-feiras à noite, acompanhava a jornalista no Globo Repórter, se aventurando por diferentes países e imaginando como seria ser como ela.
Isso aconteceu tendo como pano de fundo uma sociedade que, a partir do racismo, faz meninas negras odiarem a sua pele, o seu cabelo e todos os seus traços ancestrais. Uma sociedade que me fez escolher uma boneca branca no lugar de uma preta, por achar a outra muito mais bonita.
Mas crescer e ver Glória Maria na tela da televisão, firme e enfrentando todos os assuntos possíveis, de guerras à Copa do Mundo, foi um alento. Não é à toa que, ao entrar na faculdade de jornalismo, muitas mulheres negras a têm como um espelho, assim como outros nomes, entre eles Maju Coutinho e Aline Midlej.
Durante 20 anos, Glória usou o cabelo natural, um black power. Depois aderiu ao liso, sem deixar que seu cabelo a definisse ou, como disse, tornasse o racismo uma questão estética. O tema é muito mais profundo, e ela sabia disso.
A apresentadora sabia de sua importância quando surpreendeu uma jovem repórter da periferia de Ribeirão Preto, no interior de São Paulo, que relatava os problemas de seu bairro e viralizou na internet em 2017. O brilho no olhar da jovem, que carregava um microfone feito com plástico reciclado, é o retrato da grandiosidade de Glória.
Ainda que tenha sido a primeira em muitas coisas, Glória não queria ser a única. Ela chegou a perguntar para essa jovem, que se chamava Mirella, se ela estaria disposta a ocupar seu lugar. O que Glória realmente queria era que outras Glórias surgissem, tão competentes quanto, para ocuparem os espaços nos quais esteve. Não queria estar lá sozinha. Depois de anos, não está.
Em entrevista ao programa Memória da Globo em 2010, a jornalista e apresentadora disse que não se achava uma mulher muito corajosa. Que todas as reportagens que fez e que a puseram em perigo, no fim, eram puro coração. Se não pulasse naquele momento, não faria nunca mais.
Foi o que disse em entrevista a este jornal em 2018. “Tem duas opções. Se eu não pular, não vou saber como é. Se eu pular, o máximo que vai acontecer vai ser morrer, e pelo menos vou morrer em glória.”
Mas Glória Maria era, sim, corajosa. No fundo, sabia disso. A coragem está no simples ato de se levantar todos os dias e enfrentar o mundo, a sua profissão majoritariamente branca e masculina, de cabeça erguida. Foi preciso coragem para aparecer na televisão ao vivo pela primeira vez —e até a ajuda de um psicólogo.
Por vezes, é preciso muito mais coragem para ser uma mulher negra e jornalista do que para pular do maior bungee jump do mundo.
É preciso coragem para acreditar que, neste mundo, os nossos sonhos e os de nossos antepassados podem se tornar realidade. Foi essa coragem que Glória Maria precisou ter —e que fez com que tantas outras, como eu, também tivessem depois de se enxergarem em sua imagem.
Por mais clichê e talvez esvaziada que essa frase possa soar, repito que representatividade importa. Glória Maria é como uma semente plantada que germina e dá frutos.
Hoje, no jornalismo, que ainda caminha a passos lentos em direção à diversidade, muitas ainda seguirão se inspirando em Glória Maria.