Flores para Janaína
Poeta negra escrevia sobre Maria Firmina dos Reis e Conceição Evaristo
Um itã é uma passagem sobre os orixás. Passado de geração a geração, alguns itãs têm milênios de idade. São histórias que nos ligam aos ancestrais, com quem aprendemos o passado e enxergamos o presente. Suas origens são diversas, há variações dentro de um mesmo itã, a depender de quem conta, e alguns são mais populares que outros.
Há itãs que nasceram no Brasil, outros em Cuba, outros resistiram aos horrores do tráfico negreiro, chegaram pelo oceano e seguem vivos costurando comportamentos a partir da linha da sabedoria dos mais velhos, das mais velhas.
É 2 de fevereiro no Brasil, Dia de Iemanjá. Salvador está com a praia do Rio Vermelho repleta do povo de santo que leva suas oferendas a Iemanjá, a mãe de todas as cabeças, a senhora dos mares.
Em sua honra, popularizou no país, mesmo entre pessoas intolerantes às religiões de matriz africana, as sete ondas puladas na virada do ano e a ela pedimos para que cuide da nossa cabeça, que a cubra com serenidade para as decisões mais difíceis nossas e das pessoas que amamos.
Segundo um itã registrado no livro “Mitologia dos Orixás”, de Reginaldo Prandi, Iemanjá nasceu da união entre Obatalá, o céu, e Odudua, a terra.
Iemanjá, as águas, teve um filho com o irmão Aganju, a terra firme, chamado Orungã.
Orungã nutriu por sua mãe um amor incestuoso e um dia a raptou e estuprou. Desesperada, Iemanjá conseguiu escapar e depois fugir do próprio filho, que a perseguiu.
Quando Orungã estava prestes a apanhá-la novamente, Iemanjá caiu desfalecida. Segundo o autor Reginaldo Prandi, ao desfalecer, “cresceu-lhe desmesuradamente o corpo, como se suas formas se transformassem em vales, montes, serras. De seus seios enormes como duas montanhas nasceram dois rios, que adiante se reuniram numa só lagoa, originando adiante o mar”.
Em seguida, o ventre de Iemanjá se rompeu e dele nasceram os orixás. Xangô, o senhor da justiça; Ogum, o orixá da guerra; Oyá, a senhora das tempestades, protetora das mulheres e muitos outros. “Por fim, nasceu Exu, o mensageiro. Cada filho de Iemanjá tem sua história, cada um tem seus poderes”, completa o registro feito por Prandi.
A imensidão da grande mãe e seu ventre poderoso são motivos que a fazem ser tão amada no país, em suas diversas denominações. Nas tradição banto, as flores são para Dandalunda. Na umbanda, religião de matriz africana que é uma síntese do sincretismo da religião negra com o cristianismo e as religiões indígenas, Iemanjá ganhou vários nomes. Um deles, talvez o mais conhecido, é Janaína.
Dona Janaína, como é adorada em muitos terreiros de umbanda, é igualmente adorada neste 2 de fevereiro. E eu peço licença às minhas irmãs e irmãos umbandistas para deixar minha flor para Janaína e também para sua filha Janaína Silva Bezerra.
Janaína Bezerra era estudante de jornalismo na UFPI, a Universidade Federal do Piauí, em Teresina, a primeira de sua família a ingressar no ensino superior, e passou entre os cinco primeiros no vestibular. “Prodígia”, substantivo feminino. Conta sua mãe que Janaína detestava machistas e que seu sonho era trabalhar na televisão.
Ela era uma poeta negra que escrevia sobre a sua admiração por Maria Firmina dos Reis e Conceição Evaristo. Em sua página nas redes sociais, publicou a poesia: “Que solo fértil se fez em mim, para amenizar com indevida complacência o que me rasga a carne/ até para mim que não posso ser ausente de mim/ pertencer continua difícil/ habitar-se em totalidade/ decorar o quartinho grande e por vezes desabitado/ como botar o mar dentro de um aquário/ mas não ousaria me diminuir / pelas arestas, a visão limitada do eu/ ou por um suspiro que me resta/ prefiro ser dispersa/ imersa no que me cabe por inteiro”.
Janaína foi encontrada morta no campus da UFPI, sendo carregada por dois estudantes que foram abordados por um vigia. Estava repleta de hematomas e com sangue escorrendo pela virilha. A conclusão da Polícia Civil do Piauí é que Janaína foi estuprada e teve o pescoço quebrado. A mãe de Janaína afirma que ela foi estuprada por dois homens.
Canta o povo de umbanda “na areia, me lembrei da sereia”. “Comecei a chamar. Ô Janaína vem ver, ô Janaína vem cá, receber suas flores, que venho lhe ofertar.” Deixo minhas flores para Janaína, que caiu, mas que sua queda, assim como a de Iemanjá, seja uma geração da guerra, da justiça e da luta das mulheres. Do nascimento de um novo mundo.