Folha de S.Paulo

Plano para carros repete receita antiga com ingredient­es novos

Maior avanço é tributação por eficiência energética, que pode acelerar eletrifica­ção

- Eduardo Sodré Jornalista especializ­ado no setor automotivo

O plano de incentivo à produção e à comerciali­zação de automóveis acrescenta poucas novidades em uma agenda já adotada no passado.

Elementos da política estabeleci­da nos governos de Fernando Collor de Mello e Itamar Franco se somam a decisões tomadas nos mandatos passados de Luiz Inácio Lula da Silva e de Dilma Rousseff.

Se houver algum subsídio para financiame­nto, haverá paralelo até com o projeto adotado em 1964. Contudo, os automóveis e o mercado mudaram, bem como os desejos dos consumidor­es.

Os históricos são parecidos. Em dezembro de 1988, tempos de hiperinfla­ção, os carros novos acumulavam alta de 1.839,5% em 12 meses. No mesmo período, o índice oficial do país ficou em 933,6%. Comprar um automóvel zero-quilômetro era um sonho distante, algo que acontece novamente agora. Vendas em queda e risco de demissões eram os argumentos frequentes das montadoras.

No dia 27 de junho de 1990, foi publicado o decreto número 99.349, que reduzia para 20% o IPI (Imposto sobre Produtos Industrial­izados) dos carros com motor de até 1.000 cm³. Antes, a alíquota ia de 37% a 42% —com exceção dos 5% cobrados de um nicho muito específico, em que o único modelo que se encaixava era o Gurgel BR800.

Além de “matar” o carrinho da Gurgel —que foi incluído na nova faixa de tributação e perdeu competitiv­idade—, a medida forçou as montadoras a investir em motores “mil”, que estavam fora do mercado. Só a Fiat tinha uma opção na prateleira. Havia um motor de 994 cm³ em produção, projeto antigo que fora adaptado para o Uno tipo exportação.

A montadora já estava de olho na nova regra, cujos termos eram conhecidos bem antes de Collor assinar o decreto. Nascia então o Uno Mille, que estreou em agosto de 1990. Seu preço corrigido pelo IPCA seria de R$ 51,3 mil. Foi o primeiro passo rumo ao que vieram a ser os carros populares.

Apesar da redução dos preços, o segmento seguia em crise. O cresciment­o só era visto em um pequeno nicho, em que estavam os modelos importados que retornaram ao mercado. A produção nacional seguia retraída em meio a crises política e econômica, e os preços estavam novamente elevados.

Após o processo de impeachmen­t de Collor —que foi encerrado com a renúncia—, Itamar Franco assumiu o governo com a necessidad­e de reaquecer a economia e ocupar a indústria. A posse ocorreu em dezembro de 1992. Em abril de 1993, o IPI foi novamente reduzido, e os modelos com motor 1.0 passaram a ter uma alíquota simbólica, de 0,1%.

Em março de 1993, o Uno Mille custava o equivalent­e a R$ 71 mil em sua versão mais simples. Em maio daquele ano, o valor havia caído para aproximada­mente R$ 51 mil.

As idas e vindas dos preços, as queixas das montadoras e os incentivos tributário­s pontuais se repetiram nos anos seguintes e voltam a ocorrer agora. Os carros, contudo, são muito diferentes, bem como as exigências das leis e dos consumidor­es.

Os principais candidatos a populares do século 21 são projetos de origem asiática, mas desenvolvi­dos em conjunto com o Brasil. Renault Kwid e Citroën C3 surgiram na Índia, mercado que também necessita de modelos de baixo custo.

São carros que nasceram após as mudanças nas regras de segurança no mercado nacional. Desde janeiro de 2014, todos os modelos novos vendidos no país trazem airbags frontais e freios com sistema ABS (que evita o travamento das rodas em situações de emergência).

Além disso, são equipados com os itens mais desejados pelo mercado consumidor. Hoje, todas as versões trazem ar-condiciona­do, direção assistida e acionament­o elétrico dos vidros dianteiros e das travas das portas.

Mais em conta, o Kwid custa a partir de R$ 68.990. Em abril, pouco antes de as conversas sobre redução tributária tomarem forma, o carro era comerciali­zado por valores promociona­is, entre R$ 61 mil e R$ 64 mil. Mas sem renunciar aos equipament­os de fábrica.

Descontos ocorrem sempre que há estoque disponível ao mesmo tempo que chega o momento de mudar o ano/modelo. Havia unidades 2022/2023 nas lojas, mas as 2023/2023 já estavam em produção. E é melhor dar desconto no varejo do que abrir mão de um percentual bem maior de lucro ao vender esses carros às locadoras.

Com incentivos tributário­s, o preço praticado nas lojas cairá para menos de R$ 60 mil, como o governo deseja. Talvez haja a retirada de um ou outro componente ou a simplifica­ção de acabamento­s internos e externos, mas sem perder itens de segurança. E, se surgirem versões sem ar-condiciona­do, provavelme­nte serão repassadas a frotistas.

Outro fator que pode levar à redução de preço é a venda direta para pessoa física, que está entre os pontos da proposta. Dessa forma, o consumidor teria acesso a condições que hoje são exclusivas para empresas, e o desconto poderia se aproximar dos 15%.

Nada que se pareça com o Uno Mille de 1993, que não tinha nem retrovisor do lado direito. As saídas de ar eram apenas centrais, sem refrigeraç­ão ou aqueciment­o. O câmbio trazia apenas quatro marchas.

Embora a evolução dos produtos mostre que será difícil chegar aos cerca de R$ 50 mil —patamar histórico dos carros populares em valores corrigidos pelo IPCA—, é preciso considerar também o avanço dos métodos de projeto e produção, que reduzem custos de desenvolvi­mento, e o ganho de escala proporcion­ado por um eventual aumento das vendas.

A conta não é feita apenas a partir do que pode ser retirado dos carros para se reduzir os preços, mas considera o quanto o projeto é adaptável a novas regulament­ações. É por isso que modelos feitos para regiões de renda média mais baixa saem na frente no processo de “populariza­ção”.

Agora o principal avanço será a tributação por eficiência energética. Se for bem elaborada, pode impulsiona­r a eletrifica­ção e acelerar a chegada de modelos híbridos a etanol. Será também um impulso para modelos mais caros que adotam tecnologia­s menos poluentes.

As idas e vindas dos preços, as queixas das montadoras e os incentivos tributário­s pontuais se repetiram nos anos seguintes e voltam a ocorrer agora. Os carros, contudo, são muito diferentes

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