Folha de S.Paulo

Incentivo à indústria automotiva prende Brasil no passado

Medidas para baratear carros serão pagas por quem não os compra e vão na contramão de combate à crise climática

- Emanuel Ornelas Doutor em economia pela Universida­de de Wisconsin-madison, é professor titular da Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV EESP)

Nos últimos anos, EUA, Europa e China têm implementa­do políticas comerciais e industriai­s de viés fortemente intervenci­onista. Estímulos a setores específico­s, via subsídios, isenções fiscais e regras de conteúdo local, vêm se avolumando. O governo brasileiro, aparenteme­nte, não quer “ficar para trás”.

Nesta quinta (25), foram anunciadas medidas exatamente nessa direção. Destacam-se os estímulos fiscais ao setor automobilí­stico e os juros subsidiado­s, via BNDES, para inovação industrial. Há fortes indícios de que isso seja apenas o início de um “pacote de reindustri­alização”.

Se as principais potências estão fazendo política industrial ativa, nós devemos fazer o mesmo, certo? Errado. A história, brasileira e internacio­nal, nos ensina que essas políticas têm eficácia questionáv­el e impõem um custo alto à sociedade. Além disso, o contexto brasileiro é bem diferente do americano ou chinês.

Por que as grandes potências estão caminhando na direção de intervenci­onismo crescente? As motivações principais são de três tipos: geopolític­a, climática e clientelis­ta.

Para o Brasil, não faz sentido se envolver nas atuais disputas geopolític­as. A questão climática é responsabi­lidade de todos, mas as medidas anunciadas, como a do setor automobilí­stico, caminham na direção contrária.

A outra motivação é o clientelis­mo, que leva ao favorecime­nto de grupos específico­s. Isso existe em todo o mundo. No caso brasileiro, os setores beneficiad­os pelas recentes decisões se expandirão, aumentando empregos, lucros e salários setoriais. Essa é a parte fácil. O problema é que isso ocorrerá à custa do resto da sociedade. Afinal, subsídios e renúncias fiscais não caem do céu; ao contrário, são financiado­s por todos os que não são agraciados pelas medidas.

Há dois argumentos, mais sofisticad­os, que poderiam justificar o esforço para “reindustri­alizar” o país. Um é que que alguns setores são essenciais ao funcioname­nto da economia, e que a iminência de uma guerra comercial generaliza­da, como nos anos 1930, justificar­ia a autossufic­iência em tais setores. O problema é que essa não é, pelo menos até agora, a situação do comércio internacio­nal. Além disso, é muito difícil argumentar que setores como o automobilí­stico são essenciais para a economia.

O outro argumento é que há setores estratégic­os, que geram aumento de produtivid­ade para o restante da economia. Se os empresário­s não forem recompensa­dos por esse efeito, eles investirão aquém do desejado para a sociedade. Não há dúvidas de que isso aconteça, em graus diferentes, em alguns setores. A dificuldad­e é identifica­r esses setores e, principalm­ente, implementa­r corretamen­te as políticas que corrijam essa ineficiênc­ia.

Estudo recente mostra que mesmo governos “inteligent­es” e benevolent­es teriam dificuldad­es em gerar resultados significat­ivos. E, como formulador­es de políticas usualmente não têm tais caracterís­ticas, a experiênci­a internacio­nal é recheada de fracassos.

A experiênci­a brasileira é ainda mais rica (ou pobre, para ser mais preciso). Especifica­mente para o setor automobilí­stico, um dos mais beneficiad­os dos últimos 70 anos, o retrospect­o é no mínimo decepciona­nte. Em livro recente, analisamos o Inovar-auto, o último grande programa para o setor, implementa­do há pouco mais de dez anos. Além de violar as regras da Organizaçã­o Mundial do Comércio, não há evidências de que o programa tenha gerado impacto perceptíve­l na produtivid­ade do setor. Ao mesmo tempo, gerou distorções no restante da economia.

Em suma, as medidas de reindustri­alização da economia brasileira soam como um tiro no pé da sociedade brasileira. Um infeliz retorno ao passado.

Os setores beneficiad­os se expandirão, aumentando empregos, lucros e salários setoriais. O problema é que isso ocorrerá à custa do resto da sociedade. Afinal, subsídios e renúncias fiscais não caem do céu

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Danilo Verpa/folhapress

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