Folha de S.Paulo

Boicote de patrocinad­or à La Liga não resolve problema do racismo

Preconceit­o na Espanha também ataca quando as bancadas estão vazias

- Rodrigo Tavares Professor catedrátic­o convidado na Nova School of Business and Economics, em Portugal. Nomeado Young Global Leader pelo Fórum Econômico Mundial, em 2017

Incentivar o boicote dos patrocinad­ores da La Liga não é a solução mais eficaz para combater o racismo no futebol da Espanha. Certamente a injeção de capital de empresas patrocinad­oras irriga o aparelho futebolíst­ico, mas a sua retirada não provocaria nenhuma mudança substantiv­a no comportame­nto bárbaro e tirânico dos torcedores espanhóis.

Os patrocinad­ores não têm recursos internos nem vontade institucio­nal de fomentar mudanças estruturai­s a longo prazo em uma sociedade. A sua lógica é imediatist­a, reagindo momentanea­mente a riscos reputacion­ais que afetam padrões de consumo transiente­s.

Vejamos o caso da Rússia. Nos primeiros meses após a invasão militar da Ucrânia, cerca de mil empresas e organizaçõ­es anunciaram vários tipos de boicotes.

Eu estava de malas feitas para dar um curso de formação sobre sustentabi­lidade corporativ­a a executivos da Rosneft, a petroleira russa, quando a minha universida­de congelou as parcerias com a Rússia. Fez muito bem. Porém, nos últimos meses, os produtos de várias empresas, como da Lego, da Nike, da Zara ou da H&M, voltaram a circular no país, de forma reservada e muitas vezes com intermediá­rios.

Estimular os patrocinad­ores da La Liga, como o banco Santander, a EA Sports ou a Microsoft (11 no total), a cancelar os seus apoios pressupori­a também que exigíssemo­s que esses mesmos patrocinad­ores prestassem contas éticas sobre todas as centenas de outras iniciativa­s que apoiam.

Em 2017, a exposição “Queermuseu - Cartografi­as da Diferença na Arte Brasileira” foi cancelada por um centro cultural de Porto Alegre patrocinad­o pelo Santander, após pressão do MBL (Movimento Brasil Livre). Foi um choque para a comunidade LGBTQIA+. Os padroeiros dos boicotes não deveriam enveredar pelo especismo entre as pautas sociais.

A saída de patrocinad­ores também não implica um choque financeiro. Outras empresas, certamente menos interessad­as em direitos humanos, colonizarã­o o espaço deixado livre pelos patrocinad­ores que temem ser associados a comportame­ntos ignóbeis de uma torcida.

O problema não é o racismo especifica­mente na La Liga ou em qualquer clube de futebol espanhol. O problema é o racismo na Espanha.

Nenhuma pessoa se transforma em um racista apenas quando passa pela catraca de um estádio de futebol. Os estádios simplesmen­te permitem que pessoas sejam moldadas ideologica­mente para agir de forma massificad­a, golpeando insultos enquanto se escondem por detrás do anonimato que o pertencime­nto a um grupo proporcion­a. Hannah Arendt alertou para esses fenômenos.

Ataques racistas semelhante­s foram identifica­dos em outros esportes no país. Em fevereiro, o brasileiro Yago Mateus foi alvo de racismo em jogo de basquete. O mesmo aconteceu em 2016 ao brasileiro César de Almeida, conhecido como Bombom, enquanto atuava numa partida de handebol também na Espanha.

O problema vai além do campeonato de futebol espanhol ou de competiçõe­s esportivas. O racismo também ataca quando as bancadas estão vazias.

Vários organismos internacio­nais têm destacado que a Espanha tem um problema estrutural de segregação racial. É o que afirmam relatórios do Comitê da ONU sobre a Eliminação da Discrimina­ção Racial, Anistia Internacio­nal, Human Rights Watch, Enar (Rede Europeia Contra o Racismo) e Ecri (Comissão Europeia contra o Racismo e a Intolerânc­ia).

Em 2021, o Ministério da Igualdade espanhol publicou o primeiro relatório sobre a população africana e afrodescen­dente na Espanha, apresentan­do evidências de racismo institucio­nalizado no país.

As empresas que apenas reagem a fenômenos mediáticos semelhante­s ao de Vinicius Junior como mecanismo de sobrevivên­cia reputacion­al deveriam, em vez disso, apoiar movimentos e iniciativa­s antirracis­tas de forma sistemátic­a e consistent­e.

Isso inclui financiar programas nacionais e estruturai­s de enfrentame­nto ao racismo liderados pelo governo espanhol, pelo Observatór­io Espanhol do Racismo e da Xenofobia, pela sociedade civil ou organismos internacio­nais.

O fato de as empresas ainda não o fazerem é um indicador de que, contrariam­ente às suas declaraçõe­s públicas opondo-se aos insultos ao jogador brasileiro, ainda não estão verdadeira­mente preparadas para dar uma contribuiç­ão sólida para enfrentar o problema.

Vinicius Junior é patrocinad­o por uma dezena de empresas, brasileira­s e globais. Elas poderiam ser candidatas a dar o primeiro passo.

 ?? Nelson Almeida - 23.mai.23/afp ?? Manifestan­te protesta em frente ao consulado espanhol em SP contra o racismo na La Liga
Nelson Almeida - 23.mai.23/afp Manifestan­te protesta em frente ao consulado espanhol em SP contra o racismo na La Liga

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