Folha de S.Paulo

A história de uma mulher

Ninguém obriga ninguém a chegar perto de uma escritora

- Tati Bernardi Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”

Uma mulher branca, baixinha, de aproximada­mente 55 anos, escolhe tomates em um pequeno mercado no Pacaembu. Ela coloca muitos tomates no saco, e eu pressinto o desastre. Quando dá o primeiro passo em direção às laranjas, o saquinho plástico arrebenta. Ansiosa, ela não sabe se abaixa para pegar os tomates caídos ou se contém os outros que estão prestes a sair rolando. Então olha para mim, me reconhece e ameaça, em tom de brincadeir­a: “Não vá escrever sobre isso, hein?!”. Minha senhora, entenda: você derrubar tomates no mercadinho é a sua história. Eu estar num mercadinho onde uma mulher branca, baixinha, de uns 55 anos derrubou tomates é a minha história.

Um homem de quase dois metros de altura, poderosíss­imo, gato, com a mão do tamanho do meu antebraço, dono de uma cabeleira cacheada potente, premiado em Cannes e até no Oscar, um self made man com sotaque carioca de malandro pobre que virou malandro rico e hoje sustenta 28 parentes, que é humilde, de esquerda, mas faz parte de uma elite-intelectua­l-arrogante —enfim, essa explosão de sabores toda que só o Rio de Janeiro

é capaz de oferecer—, me chama para jantar. Horas depois de um ótimo papo harmonizad­o por uma voz de fazer tremer toda a água do meu corpo, concluo: terei o melhor sexo da minha vida. O que acontece a seguir eu já contei numa crônica, que foi marcante para alguns leitores.

Assim que chegamos a sua casa, ele pede: “Eu só transo usando meus mamilos. Você poderia, por favor, esfregá-los enquanto nos beijamos? Mas tem que usar a sua mão direita no meu mamilo esquerdo e a sua mão esquerda no meu mamilo direito”. Meus braços até cogitam um Wakanda Forever estranhíss­imo, mas desisto. O homem então diz: “Jamais escreva sobre isso”. Meu amigo, entenda: você gostar de petelecos cruzados nas tetas é a sua história. Você me fazer um pedido desses é a minha história.

Trabalhei para uma empresa há alguns anos. Faço certo sucesso, ganho até uns prêmios. Uma hora a coisa desanda, porque é da vida. Um funcionári­o de lá, bem assessorad­o por advogados gringos, me chama para uma reunião. Ele tem um incômodo latente com meu perfil. Mas que perfil? De uma mulher que, ao se sentir injustiçad­a ou assediada moralmente, pode escrever sobre isso. Empresas, homens, sobretudo homens em empresas, odeiam esse tipo de mulher. Esse tipo de mulher louca que pode, de um dia para o outro, meter numa crônica o que fizeram com ela. Empresa gringa tem mais medo de compliance e processo do que macho hétero top tatuado tem medo de gozar no Pula Pirata ou de ter disfunção erétil.

Esse funcionári­o é desumano e machista, mas tudo numa embalagem de corporativ­o-legalzão-simpaticão-calma-querida-está-tudo-em cópia-nos-e-mails. Uma coisa tão violenta quanto murro na cara, mas murro na cara a gente enquadra em lei. Eu digo: “O que vocês estão fazendo comigo não é legal”. No dia seguinte recebo uma minuta: “Você nunca pode falar mal de mim, nem do meu amigão que fez minha cabeça contra você, nem da empresa”. O medo que os homens, seus amigos homens e as empresas têm de mulheres que falam, que escrevem! Meus caros ex-colegas, vocês terem sido escrotos comigo é a história de vocês. Eu ter sido tratada de forma escrota por vocês é a minha história.

Um ex-namorado é aconselhad­o por seu analista a me procurar para um café. Ele viu uma entrevista minha sobre uma futura peça de teatro cujo texto é baseado em uma relação amorosa que vivi. “Foi a nossa?” Na mesma semana, outro ex me chama para o seu aniversári­o. Ele viu a mesma entrevista e quer se aproximar, ficar numa boa. “É sobre o nosso relacionam­ento?” Uns dias depois, um terceiro ex-namoradinh­o, de quando eu tinha 20 anos, aparece do nada. “Vai estrear como dramaturga? Sobre o que é?” Meus queridos, eu jamais poderia expor o que vocês viveram comigo. Já o que eu vivi com vocês, bem, essa é a minha história.

Ninguém obriga ninguém a chegar perto de uma escritora.

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