Folha de S.Paulo

A geração Vinicius Junior

Nenhuma criança nasce racista, é a maldade dos adultos que lhes ensina

- Paulo Vinicius Coelho Jornalista e autor de “Escola Brasileira de futebol”. Cobriu sete Copas e oito finais de Champions

É muito difícil encontrar um fio de esperança depois de mais essa trágica semana racista. Não apenas pelo caso de Vinicius Junior, em Valência, mas também o do colombiano Rodallega, chamado de macaco por um torcedor do Gimnasia y Esgrima de La Plata, na Argentina: “Não melhoramos como humanidade”, disse o atacante, que passou rapidament­e pelo Bahia.

Teve mais ainda. Ângelo e Joaquim, do Santos, foram vítimas de racismo na Copa Sul-americana. O atacante foi ofendido enquanto se dirigia para o banco de reservas, substituíd­o durante o jogo contra o Audax, no Chile; o zagueiro, numa área reservada aos jogadores, depois de ser expulso.

Todos os dias há um novo episódio no futebol e esta é, provavelme­nte, apenas a maneira mais visível de se enxergar as moléstias de uma sociedade doente. Não é a Espanha, ou a Rússia, ou a Argentina, ou o Brasil. É o mundo todo!

Vinicius está para o ano de 2023 como George Floyd esteve para 2020. Seu grito por justiça provocou o pronunciam­ento do presidente Lula durante a conferênci­a do G7, no Japão. Seguiram-se declaraçõe­s de outros integrante­s do governo, como o ministro da Justiça, Flávio Dino, e a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco.

Diante do quadro, o presidente do governo espanhol, Pedro Sánchez, precisou sair de sua neutralida­de. Tratou de retuitar documento do Conselho de Desportos de seu país: “Tolerância zero. O esporte se fundamenta em valores de tolerância e respeito.”

O presidente de La Liga, Javier Tebas, saiu de seu trono de arrogância e procurou emissoras de televisão brasileira­s, Globo e ESPN, para dizer que, se Vinicius entendeu mal, pede desculpas.

Vinicius compreende­u muito bem, melhor do que a maioria das populações de Espanha e Brasil jamais foram capazes de entender. O Campeonato Espanhol dura nove meses e foram dez agressões racistas nesse período. Se estivesse realmente sensibiliz­ado, o primeiro-ministro Pedro Sánchez teria manifestad­o isso pelo menos em uma das nove vezes anteriores. Javier Tebas disse mais de uma vez que Vinicius precisava se informar sobre as medidas de combate da Liga, como se alguma delas funcionass­e.

Enquanto se calaram contra o racismo, os clubes espanhóis venderam sua Supercopa para a ditadura da Arábia Saudita. A preocupaçã­o visível de Tebas e Pedro Sánchez é preservar uma indústria que une futebol e turismo e produz 1,37% do PIB.

“Vinicius não pode manchar a Liga”, disse o cínico presidente de La Liga. Impression­ante ouvir os relatos do lateral Roberto Carlos, chamado de “chimpanzé” em sua primeira temporada pelo Real Madrid, em 1995!

Se a sociedade tivesse ouvido a sua denúncia, há 28 anos, a Liga nunca teria alcançado a importânci­a atual.

Nesta semana, em que a ferida da humanidade mais uma vez se expõe, o único depoimento capaz de nos dar um pouco de fé foi oferecido pelo jornalista Fernando Kallaz, no Redação Sportv: “As crianças que vivem em Madri e torcem pelo Real idolatram Vinicius Junior. Não se trata de gostar. Idolatram. É disparado o jogador mais querido e carismátic­o do Real Madrid”.

Nenhuma criança nasce racista, e só a maldade dos adultos é capaz de colocar nos mais puros corações a mais nojenta discrimina­ção. As meninas e os meninos adoram Vinicius Junior, seus dribles, seus gols e sua alegria de jogar futebol, estampada em seu sorriso. Respeitam também sua coragem de gritar por igualdade.

Quem sabe sejam elas a permitir que Rodallega ainda tenha tempo de ver e acreditar em alguma evolução na humanidade.

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