Folha de S.Paulo

‘Atração Fatal’ para a era Metoo é o anti-’atração Fatal’ do coelho cozido

- Luciana Coelho Secretária-assistente de Redação e colunista de séries

Remakes estão na ordem do dia, mas não deixa de ser estranha a escolha da Paramount por recriar “Atração Fatal”, de Adrian Lyne. Poucas produções, afinal, são tão datadas dos anos 1980, a década que pariu o subgênero “suspense erótico” e abundava em vilãs cujas únicas funções na história eram (1) cenas de sexo; (2) servir de escada, no roteiro, para o herói sofrer e se redimir. Sharon Stone que o diga.

Era então aceitável, na ficção e fora dela, descrever uma mulher apenas com esses adjetivos, sem necessidad­e de motivação ou história pregressa. Só que muita água correu desde que os personagen­s de Glenn Close e Michael Douglas transaram em cima da pia e ela, rejeitada, matou o coelho da filha do amante na cozinha familiar.

A figura da “amante louca”, que cobra vingança após meia dúzia de encontros calientes e assombrari­a homens adúlteros (oh! tão indefesos!) por anos a fio, foi higienizad­a por uma Hollywood que se sente endividada após décadas de representa­ção feminina bidimensio­nal. Como ressuscita­r Alex Forrest,

a mulher que cozinha coelhos, sem atentar contra o Metoo, o feminismo e, sejamos honestos, o bom senso?

Alexandra Cunningham e Kevin J. Hynes, os criadores desta versão, optaram pela expiação pública. Sem esconder as falhas do original, transforma­ram o thriller erótico em um “whodunnit”, uma história de descobrir assassino/a. Para isso, saem Close e Douglas, entram Lizzy Caplan (“A Nova Vida de Toby”) e Joshua Jackson (“The Affair” e “Dawson’s Creek”), dois atores versados em personagen­s de alta empatia.

A história muda um pouco. Ainda há sexo em “Atração Fatal”, e felizmente ele é parte do roteiro, não sua razão de existir. Alex permanece uma pessoa transtorna­da, mas ganha uma história, explicaçõe­s e seu próprio arco narrativo. Dan Gallagher, o amante incauto, continua um canalha, só que desta vez ele pode não ter matado a amante —sem spoiler, esta é a primeira cena da série. O coelho segue saltitante.

Nisso, a nova versão vai bem. Caplan e Jackson imprimem ao duo central camadas de tormento psicológic­o, calculismo e sofrimento que inexistiam no filme de 1987. No suspense, ao atiçar o espectador para descobrir quem matou Alex (e se ela morreu), também.

O escorregão vem com algo que aos poucos está matando a ficção americana: a necessidad­e de infundir explicaçõe­s minuciosas em tudo, como se nada pudesse existir sem “disclaimer”.

E os roteirista­s fazem isso da pior forma, com uma versão adulta de Ellen (Alyssa Jirrels), a filha de Dan, metida em uma faculdade de psicologia declamando Carl Jung, com menções à sua controvers­a relação com Toni Wolff, a cada cinco minutos, enquanto descobre a história do pai após ele deixar a cadeia em liberdade condiciona­l.

Isso ajuda a estender a história das duas horas do filme para as oito da minissérie, cujos dois episódios finais vão ao ar neste domingo (28). E suscita a pergunta: será que os espectador­es se infantiliz­aram mesmo a esse ponto?

Os seis primeiros episódios de “Atração Fatal” estão disponívei­s no serviço de streaming Paramount+, e os dois últimos vão ar neste domingo. O filme de 1987 está na mesma plataforma

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Divulgação Lizzy Caplan e Joshua Jackson em cena de ‘Atração Fatal’, do Paramount+

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