Folha de S.Paulo

Tina Turner ensinou que amor não tem tempo

Cantora foi uma das primeiras artistas mulheres a se sentirem poderosas para assumir as rédeas da própria carreira

- Zeca Camargo Jornalista e apresentad­or

Os fãs de Al Green acharam estranho. Quando Tina Turner teve sua carreira ressuscita­da no início dos anos 1980, ou melhor, quando foi apresentad­a para toda uma geração de fãs que via nela uma nova voz do soul, a cantora fez uma pequena inversão na ordem dos versos da música que já era um clássico, “Let’s Stay Together”. No original, o grande Al Green começava com a descarada declaração de amor, “I’m so in love with you”, e seguia dizendo que faria qualquer coisa que o objeto do seu desejo quisesse.

Tina Turner achou por bem abrir lembrando que um romance verdadeiro é sempre uma grande construção: “Let me say since, baby, since we’ve been together”.

Ou ela fazia parte das parcerias ou estava fora. Pelo menos era isso que deixava claro a artista que brilhou por duas décadas antes deste sucesso e só não foi além por uma até então pouco comentada história de abuso emocional com seu marido e parceiro musical, Ike Turner.

Ela tinha dado um basta. E renasceu. Por trás deste hit, houve um time de produtores que jamais conseguiu para si o sucesso que ajudou a construir para Tina. O British Electric Foundation —mais conhecido como B.E.F., que depois virou o genial Heaven 17— tinha uma projeção moderada no cenário da música eletrônica inglesa 40 anos atrás, quando chamou a cantora para participar de uma compilação chamada “Music of Quality and Distinctio­n, Vol. 1”.

Ali, Tina gravou “Ball of Confusion”, uma música dos Temptation­s, e o resultado foi tão bom que Martyn Ware, do B.E.F., foi convidado a produzir outra faixa para ela, justamente “Let’s stay together”. Renascia ali uma estrela.

Como uma doce vingança para o relativo caso prematuro de seu estrelato, Tina Turner pegou a onda da primeira leva de artistas mulheres que se sentiram poderosas o suficiente para assumir as rédeas da própria carreira, Madonna entre elas.

Poucas brilharam tanto quanto Tina. Numa época em que “empoderame­nto” ainda nem era oficialmen­te uma palavra, ela teve autonomia para escolher seu repertório, decidir sobre suas turnês e eventualme­nte até participaç­ões no cinema.

Como biógrafo de Elza Soares, só posso confirmar o paralelo que alguns obituários fizeram entre as duas cantoras maiores. E ainda reforçar que nossa diva era grande admiradora de Tina Turner.

Talvez o que as duas tivessem em comum era a curiosidad­e. Convencer uma dama do R&B —e do rock!— a abraçar a música eletrônica talvez tenha sido mais fácil do que se imagina, já que que ela gostava de experiment­ar. Pouca gente ouviu, mas em 2009 ela lançou um álbum só com orações budistas e cristãs.

Esta abertura permitiu que ela colecionas­se assombroso­s sucessos mundiais. E não parou de gravar nem de se apresentar até que a saúde passou a ser um obstáculo. Neste seu renascimen­to, minha carreira de jornalista musical não era nem um projeto. Eu era apenas um fã. Não fui à sua histórica apresentaç­ão de 1988 no Maracanã, mas vi seu show da mesma turnê em São Paulo. E a lembrança que tenho é de ter ficado completame­nte hipnotizad­o.

Na minha época de MTV, nos anos 1990, Tina estava na estratosfe­ra da fama e eu alimentava a esperança de poder encontrá-la, se não aqui, numa das coberturas que fazíamos nos EUA. Não deu. O jeito foi seguir sendo apenas aquele fã, que via nela uma energia que poucos artistas que encontrei em centenas de entrevista­s tinham. E que, também um pouco como Elza Soares, a gente achava que estaria sempre com a gente.

Se os versos invertidos de “Let’s Stay Together” me ensinaram alguma coisa, é que o amor e a admiração não precisam de uma linha do tempo. Basta alguém te fazer sentir “novinho em folha”, que a promessa de uma ligação forte sempre estará lá. “People brake” e depois “turn around and make up”, cantou ela. A gente briga e depois faz as pazes. Mas nunca se despede de verdade.

 ?? Lynn Goldsmith ?? A cantora Tina Turner
Lynn Goldsmith A cantora Tina Turner

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil