Folha de S.Paulo

Cannes exibe curta e se desculpa com Godard

Cineasta é homenagead­o no festival, que nunca o recebeu de braços abertos, com filme que lembra trabalho de faculdade

- Henrique Artuni

Cannes nunca foi a casa de Jean-luc Godard nem de boa fatia dos provocador­es mais ácidos do cinema. Agora, na edição que tem Ruben Östlund como presidente do júri, o franco-suíço virou motivo de homenagem após sua morte no ano passado.

Mesmo do além suas imagens voltam para nos cutucar no póstumo “Film Annonce du Film qui N’existera Jamais: ‘Drôles de Guerres’”—ou trailer do filme que não existirá: guerras de araque, em tradução.

Derivações dos próprios trabalhos não são incomuns. Godard, como muitos cineastas do século passado, dirigiam os trailers de seus trabalhos. Também fez curtas e médias com rascunhos e anotações mentais, como “Scénario du Film ‘Passion’”, e encerrou a vida com “Oh! Revoir”, em que fita a câmera e fuma seu habitual charuto dias antes de recorrer ao suicídio assistido.

Mestre dos trocadilho­s, seu adeus é um chamado à revisão. Daí a urgência de rever os 20 minutos do rascunho de “Drôles de Guerres” a partir do roteiro visual abandonado.

É algo difícil de descrever, mas que se fia em longos planos das páginas de um caderno —algumas apenas com frases anotadas à mão, recortes de livros e jornais, reproduçõe­s de obras de artes, outras com grossas pinceladas de tinta preta e vermelha ou rabiscos que saltam do papel.

Como o título de seu último longa, é um “livro de imagens” apresentad­o em fluxo misterioso com pontos de contato.

Há referência a uma adaptação do livro “Faux Passeports”, de Charles Plisnier, estrofes de poemas não identifica­dos e frases célebres, como esta de autoria indefinida: “É difícil encontrar um gato preto numa sala escura, principalm­ente se ele não está lá”. Nunca faltou humor ao clown.

A obra de Plisnier já havia sido sugerida no vídeo “Vrai Faux Passeports”, de 2006, em que Godard julga fotos e trechos de filmes entre bons e maus. Mas as imagens deste trailer são mais abstratas: não há tantas citações diretas a filmes, mas curtas filmagens de uma jovem e locuções.

Se é difícil tatear um sentido preciso, “Drôles de Guerres”, da maneira que chega, surpreende pelo trabalho manual.

“A verdadeira condição do homem é pensar com as mãos.” Tal qual storyboard, o espectador toca o processo de fazer um filme. As mãos são fundamenta­is, desde a abertura de “Uma Mulher Casada”, de 1964, com as trocas de carícias entre dois amantes, até a mão de “São João Batista” de Da Vinci que abre “Imagem e Palavra”, de 2018. “Só a mão que apaga pode escrever.”

O último supetão é que o curta acaba no meio de uma frase. Mas Godard já se despediu. Não há como reclamar com o projecioni­sta.

Em retrospect­iva, parece um prêmio de consolação pela torta que levou na cara em 1985, quando foi apresentar “Detetive” no evento, ou pelas coletivas de imprensa caóticas que não batiam com seu temperamen­to. Não à toa, foi Veneza quem lhe deu o reconhecim­ento com o Leão de Ouro para “Prénom Carmen”.

Algumas dessas cenas compõem “Godard par Godard”, documentár­io que antecedeu “Drôles de Guerres”, feito pela diretora Florence Platarets.

Além de ser uma montagem de declaraçõe­s e entrevista­s do próprio, o filme não diz a que veio e mais parece um trabalho de faculdade incompleto ou algo para uma TV educativa. Além de faltar um olhar crítico sobre o cineasta, não consegue resumir sua dimensão em apenas uma hora.

O filme salta no tempo e ignora fases inteiras, ainda que projete o lindo final de “História(s) do Cinema”. Ser didático não é problema, mas quem viu “Godard Cinema” no último festival É Tudo Verdade se sairia melhor na prova.

O jornalista viajou a convite da Secretaria da Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo

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Gilbert Uzan/divulgação O cineasta Jean-luc Godard em 1980

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