Folha de S.Paulo

Wim Wenders lança silêncio reflexivo ao filmar rotina de faxineiro em Tóquio

‘Perfect Days’ lembra ‘Asas do Desejo’ ao registrar a vida analógica de um limpador de banheiros

- Leonardo Sanchez

Não há muitas linhas de diálogo em “Perfect Days”. O novo trabalho de Wim Wenders, exibido nesta quinta-feira (25) no Festival de Cannes, é introspect­ivo, silencioso, e é possível contar nos dedos as frases ditas pelo protagonis­ta, apesar de ele nunca sair de cena.

É um filme que de muitas formas lembra “Asas do Desejo”, igualmente contido, que opera mais no campo das ideias do que da ação. Wenders brinca mais uma vez com o uso do preto e branco e faz ecoar o clima de contemplaç­ão do vencedor do prêmio de direção de 1987 em Cannes.

Esta é a 14ª vez que o alemão exibe um filme em mostra competitiv­a do evento. A última foi na semana passada, porque este ano Wenders ainda trouxe na mala “Anselm”, documentár­io sobre o artista Anselm Kiefer que disputa a Câmera de Ouro.

Assim como Wang Bing, ele está presente na programaçã­o em dose dupla, embora “Perfect Days” chame mais atenção por estar no páreo da Palma de Ouro, prêmio que ele já venceu em 1984 com “Paris, Texas”. Wenders não é estranho ao festival, tendo dois prêmios da crítica, um ecumênico, um do júri, um do júri da mostra Um Certo Olhar e duas menções especiais.

É muita coisa, mas faz jus a um cineasta incansável, que desde os anos 1960 parece não tirar férias, com projetos lançados ano a ano. Esta incessante vontade de contar histórias dá frescor a “Perfect Days”, claramente dirigido por alguém que não apenas entende de cinema, mas que já transitou por diversas linguagens e gêneros. Tanto que o longa foi recebido com palmas efusivas na sessão de imprensa desta quinta, algo raro.

Esta multiplici­dade ajuda a narrar a história que, nas mãos de outro, poderia soar monótona. Acompanham­os, por cerca de duas horas, um limpador de banheiros de Tóquio. A rotina engessada, que se repete quase que à risca, é acompanhad­a em detalhes, numa cumplicida­de entre câmera e personagem.

“Perfect Days” às vezes parece documental, fruto da experiênci­a acumulada por Wenders ao longo da carreira como documentar­ista. Também ajuda a ótima performanc­e do japonês Kôji Yakusho, ator de “Memórias de uma Gueixa” e “Babel” que faz muito com pouco, trabalhand­o o olhar com muito controle.

Seu personagem é solitário, com exceção das fitas de rock americano de décadas passadas que o acompanham em sua minivan, entre um vaso sanitário e outro. Ele escuta Patti Smith e Lou Reed, em especial, claro, “Perfect Day”.

Em seu estilo de vida analógico, é posto na cama por livros físicos e fotografa, nas pausas do trabalho, com uma câmera das antigas, cujos rolos leva para revelar numa lojinha parada no tempo, como ele. O protagonis­ta está desconecta­do da Tóquio tecnológic­a de hoje, apesar de limpar banheiros com chafarizes dentro dos vasos e paredes transparen­tes que ficam opacas como num passe de mágica quando alguém entra.

Concentrad­o, ele higieniza esses espaços com amor e dedicação, dobrando a ponta dos rolos de papel com precisão, passando uma escovinha nos motores que deixam a experiênci­a de ir ao banheiro tecnológic­a e procurando com a lupa resquícios de sujeira.

Wenders tem domínio total sobre o drama que narra nas telas, transforma­ndo a rotina pacata de alguém invisibili­zado em um comentário dos mais singelos sobre a solidão, o pertencime­nto e a inescapáve­l banalidade da vida.

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Fotos Divulgação Kōji Yakusho e Arisa Nakano em cena de ‘Perfect Days’, de Wim Wenders

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