Folha de S.Paulo

Tina Turner: a mulher e o ícone

Ao libertar-se, cantora deu asas a todas nós: às artistas e às mulheres

- Djamila Ribeiro Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenado­ra da coleção de livros Feminismos Plurais

Escrevo esta coluna horas depois de saber da morte da grande artista Tina Turner e fui inundada por um turbilhão de emoções. Lembro que primeiro eu me apaixonei pela artista. Ficava horas ouvindo as músicas, ensaiando passos, admirando sua beleza e sua vitalidade nos palcos.

Tina Turner embalou meus sonhos e aninou minhas festas. Gostava de ver aquela mulher negra na televisão, lotando shows, com um visual único, muito diferente da maioria das artistas negras.

Foi na década de 1990, ao assistir ao filme baseado em sua vida, protagoniz­ado por Angela Basset, que passei a me apaixonar pela mulher.

Foi chocante saber das violências que ela sofreu do ex-marido Ike Turner, o ambiente tóxico em que viveu por tantos anos, as várias tentativas de diminuir seu talento. Ali, vimos uma realidade, infelizmen­te, comum a muitas mulheres.

A coragem de contar essa história, humanizand­ose, foi algo grandioso que, com certeza, ajudou a fortalecer muitas mulheres. O encontro dela com o budismo, a retomada da própria vida, o renascimen­to da estrela.

Há dois anos assisti ao musical na Broadway sobre sua vida, com a atriz Nkeki Obi Melekwe, que foi escolhida pela própria Tina. Melekwe faz um trabalho muito bonito e nesse espetáculo pude conhecer mais detalhes da história da artista e da mulher.

O musical termina com a apresentaç­ão de Tina Turner no Maracanã, em 1988, que é recorde de público. Mais de 180 mil pessoas lotaram o estádio, fazendo com que a cantora mantenha até hoje o recorde de público pagante para o show de uma artista solo.

Na Alemanha, em 2018, estive na Bienal de Artes de Berlim, a convite da organizaçã­o. O tema da Bienal era “We Don’t Need Another Hero”, eternizado na voz de Tina para sua música feita especialme­nte para o filme “Mad Max – Além da Cúpula do Trovão”, em que ela interpreta a Tia Entity.

Foi uma das várias e a mais marcante interpreta­ção de Tina Turner como atriz. Mas gostaria de voltar à música, que nos provoca algumas reflexões.

Em certa parte, Tina canta: “E eu me pergunto quando/ Nós vamos mudar/ Vivendo sob o medo/ Até que não reste nada mais”. E então chega ao refrão: “Nós não precisamos de outro herói/ Nós não precisamos saber o caminho de casa/ Tudo o que queremos é uma vida além/ Da Thunderdom­e”. Thunderdom­e era, no filme, uma arena onde aconteciam lutas até a morte.

A música de Tina nos convida para a coragem de viver com intensidad­e. Exatamente como ela era nos palcos, a vibração de sua voz e a sintonia de sua mensagem eram fogo que esquentava e alimentava vidas.

Para mim, uma mensagem dessa música que tantas vezes ouvi é não buscarmos heróis ou heroínas, mas encontrarm­os a disposição para vivermos com autenticid­ade dentro de nós mesmos, em busca de uma vida além da morte. Nisso Tina Turner foi mestra.

Mais recentemen­te assisti ao documentár­io sobre a vida dela na HBO Max com a minha filha e foi um momento muito bonito, poder dividir este amor e ver o brilho nos olhos da minha filha ao conhecer esta história.

Muito importante que seja Tina, em primeira pessoa, sendo a protagonis­ta de sua própria história. Pessoas importante­s em sua vida como Oprah Winfrey participam, mas é a cantora quem tem o controle de sua narrativa.

Quando se separa de Ike Turner, seu primeiro marido, Tina foi forçada a abrir mão de tudo o que havia construído no período em que cantou na banda do ex. Nenhuma gravadora a queria. Ela cantou em cassinos para sustentar os três filhos. Após os 40 anos e muita luta, conseguiu fazer um sucesso estrondoso pelo mundo.

Numa indústria que impõe a juventude quase eterna para as mulheres, Tina Turner quebrou imensos paradigmas. Uma artista negra, acima dos 40 anos, que se tornou estrela do rock e não tinha medo de mostrar sua sensualida­de.

Um furação nos palcos, com o cabelo para cima e lindas pernas de fora que marcou época e inspirou gerações de cantoras. Uma mulher e mãe negra que enfrentou anos de violências, que encontrou o amor verdadeiro após os 40 e juntou os pedaços de si e se fez inteira.

Ao libertar-se, Tina Turner deu asas a todas nós, das artistas às mulheres.

Obrigada, Tina Turner. Sua pessoa foi “simply the best”!

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Aline Bispo

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