Folha de S.Paulo

Tempos modernos

- Hélio Schwartsma­n

A mentira precede a linguagem humana. Basta olhar para fenômenos biológicos como o mimetismo e a camuflagem para concluir que o engodo é parte indissociá­vel da natureza. E, embora o logro nos assombre desde sempre, nossos cérebros operam como se as informaçõe­s que obtemos em nossas interações com outros humanos fossem verdadeira­s. Os psicólogos chamam essa tendência de viés de verdade.

São duas as razões principais pelas quais o viés de verdade se estabelece­u. Nossos semelhante­s de fato nos municiam com mais declaraçõe­s verdadeira­s do que falsas (ou a linguagem seria inútil e nem existiria), e duvidar de tudo, à maneira de Descartes, teria um custo cognitivo proibitivo. Lidamos com o problema das inverdades assumindo os discursos alheios como em princípio corretos, mas nos reservando o direito de desconfiar quando há elementos para isso.

Os sinais amarelos vêm em vários tamanhos e formatos. Pessoas que já mentiram para nós se tornam automatica­mente suspeitas. As mal faladas, idem (a fofoca tem valor adaptativo). Se a história contada é muito mirabolant­e, os circuitos da dúvida também são acionados. E por aí vai. É tudo uma questão de calibragem entre o viés de verdade e as razões legítimas de desconfian­ça.

Avanços tecnológic­os tornam necessária a recalibrag­em dos parâmetros. Até aqui, imagens despertava­m menos desconfian­ça do que palavras, porque falsificá-las era relativame­nte difícil. Não mais. Com os chamados “deepfakes”, não podemos mais assumir fotografia­s e vídeos como mais críveis que discursos. O mesmo vale para vozes.

Até as apostas exigem ajustes. Dada a multiplica­ção dos sites e dos eventos apostáveis, tornou-se prudente desconfiar de tudo o que envolva a agência humana. Se você é do tipo que insiste numa fezinha, prefira loterias numéricas auditadas a condutas que dependam da ação de um só ou de poucos indivíduos. São os tempos modernos em que vivemos. helio@uol.com.br

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