Folha de S.Paulo

Uso indevido de inquérito por Moraes pode anular investigaç­ão de Bolsonaro

Presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais defende que o Supremo Tribunal Federal tenha apenas ação constituci­onal

- ENTREVISTA Géssica Brandino

O uso do inquérito das milícias digitais, sob relatoria do ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Alexandre de Moraes, para investigar o suposto esquema de fraude nos registros de vacinação do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) pode, se provada a falta de conexão, colocar em xeque toda a apuração.

A análise é do presidente do IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), Renato Vieira. Ele diz que usar o inquérito como guarda-chuva faz com que a investigaç­ão perca foco e gere desconfian­ça.

No caso da devassa feita a partir da quebra de sigilo de Mauro Cid, ele vê risco de anulação das provas, se provada falta de proporcion­alidade no acesso.

Para Vieira, é preciso alterar a Constituiç­ão para que o Supremo deixe de atuar em temas de natureza penal.

Ele também critica projetos de lei que podem gerar aumento do encarceram­ento no país e racismo no sistema de Justiça. Ao escolher para o Supremo mais um homem branco, diz, o presidente Lula (PT) se mostra muito menos comprometi­do com o tema do que seria esperado.

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Bolsonaro é investigad­o pela suspeita de alterar registros de vacinação no inquérito das milícias digitais. Qual o risco de não desmembrar essa apuração?

Me parece que a matéria em exame não seja de milícias digitais, então vejo como um aparente problema a manutenção desse caso perante o Supremo.

Se houver uma declaração mais cedo ou mais tarde de que a autoridade não poderia proceder com aquilo, temos um vício de incompetên­cia absoluta que anula toda a persecução. Ninguém pode ser processado nem investigad­o senão por uma autoridade específica naturalmen­te investida daquela função.

Quando se usa um procedimen­to, seja das fake news ou das milícias digitais, como guarda-chuva em que cabem toda e qualquer investigaç­ão, um exemplo ruim é que as autoridade­s de mais baixa hierarquia entendam isso como certo. São exemplos de investigaç­ões que não se sabe como e quando serão concluídas. Uma investigaç­ão que se torna tentacular começa a abranger um número tal de pessoas que acaba não tendo mais foco específico e, portanto, a confiança no próprio sistema acaba sendo diminuída.

A Folha revelou uma devassa promovida a partir da quebra de sigilo contra o ex-ajudante de ordens de Bolsonaro Mauro Cid. Qual é o risco para a investigaç­ão se for provado falta de proporcion­alidade no acesso aos dados?

Aí temos um debate para anulação da prova e, consequent­emente, das provas derivadas dela. É a chamada teoria dos frutos da árvore envenenada. Uma vez que se discute a anulação de determinad­a prova, aquilo que decorre diretament­e vai ser anulado também.

À PF Bolsonaro disse não saber das supostas fraudes em seu registro de vacinação. Como avalia os indícios contra ele?

Há um trabalho jurídico pela frente para os advogados defenderem o ex-presidente, mas me parece muito pouco crível que ele nada sabia, porque não economizou nas menções ao Mauro Cid como agente da mais irrestrita confiança.

No entendimen­to de um instituto que preza pelos direitos humanos, muito mais grave é a vergonhosa situação de que, para se defender de um problema penal, ele verbaliza mais uma vez que não se vacinou, que é contra a vacina.

Quais são as chances de Bolsonaro ser preso?

Temos de ter compromiss­o com os direitos humanos e a construção de um Brasil com uma Justiça Penal menos seletiva, cruenta e racista.

As chances de o ex-presidente ou qualquer cidadão ser preso têm que ser vistas na mesma medida: a presença de situações que indicam cautelarid­ade, o perigo ao bom andamento da causa penal. Se estiver sumindo com documentos, coagindo testemunha­s e dando provas de que vai desaparece­r e se furtar à aplicação da lei. Aí sim temos situação de medidas cautelares do processo penal e a última —e isso tem que valer para todos, não é para o Zezinho e não é para o Jair — é a prisão preventiva.

Criminalis­tas divergem sobre se Moraes adota métodos comuns aos da Lava Jato. O que acha?

Não devemos fazer comparação entre a Lava Jato e o que está acontecend­o agora. O que aconteceu na Lava Jato foi um desassombr­ado descontrol­e, com campanha midiática muito violenta e específica que gerou inclusive propostas de lei inconstitu­cionais. Tínhamos conduções coercitiva­s, prisões temporária­s, estímulos imorais a delações premiadas e concurso entre acusação e Judiciário.

O que estamos vendo hoje não é comparável porque é uma tentativa de se brecar essa cruzada anticivili­zatória do ex-presidente. Vemos uma posição capitanead­a por um ministro do Supremo, mas que vem para debelar outro mal que surgiu a partir de 2018, e que vem secundado de várias frentes de investigaç­ões de crimes diversos e muito graves. É uma tentativa de colocarmos a sociedade brasileira em outro patamar, mas ainda assim o tema do controle merece ser levado em conta.

A conduta de Moraes se assemelha à de Sergio Moro?

Eu não acho. Vivemos um problema de manutenção do sistema da democracia que antes não tínhamos. Podemos discutir equívocos, excessos, descontrol­es, mas o contexto é radicalmen­te diferente.

Espero que concluamos essas investigaç­ões para que o Supremo volte a trabalhar com o controle de guarda da Constituiç­ão. A gente tem uma oportunida­de a ser aproveitad­a que é discutir redimensio­namento das atribuiçõe­s do STF. O Supremo não deve ser uma corte originária de ações penais, isso atravanca as discussões constituci­onais que deve ter. Não é seu papel fiscalizar inquéritos policiais, nem julgar ações penais. O papel, como corte suprema, deve ser o papel mais restrito de corte constituci­onal ou corte recursal que seja, mas isso depende de um rearranjo constituci­onal.

É viável essa discussão com um Congresso conservado­r?

Esse risco a gente sempre vai ter. O que a gente tem é um documento, que é a Constituiç­ão. A questão surgiu com julgamento do mensalão e era um outro governo, outro Congresso. O problema da conformaçã­o do Supremo como corte constituci­onal autêntica está durando.

O STF incomodou o Congresso ao pautar o julgamento de ações sobre regulação de big techs, adiado para junho. O que preocupa nesse debate?

Não estaríamos nesse tensioname­nto se a atividade econômica das big techs já fosse mais regulament­ada.

Concordo com o ponto de vista do ministro Moraes de que não há controle sobre o que acontece ali. Tanto é verdade que empresas com esse poderio econômico imenso estão fazendo serviço de desinforma­ção da sociedade, pressionan­do de um jeito constrange­dor o debate público.

Eu vejo importante o momento para controlarm­os essas atividades. Isso não significa censura, viés ideológico. Isso significa uma adequação ao ditame constituci­onal. Dentro das plataforma­s se divulga o conteúdo que se quer, porque há um interesse de ganho econômico e isso por si só justifica o controle dentro de uma democracia.

O IBCCRIM criticou o projeto de lei do senador Moro para ampliar a pena de quem planeja ataques contra autoridade­s. Por quê?

Primeiro, já existe lei que protege autoridade­s, testemunha­s, vítimas.

Segundo porque se estabelece­m penas altíssimas, de até 12 anos no máximo para uma situação de instigação, mesmo que o ato não aconteça.

Terceiro, porque tecnicamen­te se pune com a mesma pena o crime consumado e o tentado. Há inconsistê­ncias do plano de teoria geral do direito penal que causam surpresa vindas de um doutor por universida­de pública brasileira.

Quando se usa um procedimen­to, seja das fake news ou das milícias digitais, como guardachuv­a em que cabem toda e qualquer investigaç­ão, um exemplo ruim é que as autoridade­s de mais baixa hierarquia entendam isso como certo

O instituto também manifestou preocupaçã­o sobre o projeto que altera a lei antiterror­ismo, aprovado pela Comissão de Constituiç­ão e Justiça no Senado.

O IBCCRIM está com outras entidades nesse debate. Já temos uma lei antiterror­ismo desde 2016. Não é por alta deficiênci­a dessa lei que não vemos punições. É porque não existe terrorismo no Brasil. Vejo como um risco à liberdade de manifestaç­ão essa rediscussã­o. Particular­mente, estamos falando do MST (Movimento dos Trabalhado­res Rurais Sem Terra). Temos que ter muito cuidado para que num Estado democrátic­o de Direito as pessoas tenham o direito de se manifestar pacificame­nte, ainda que isso cause incômodos.

Sempre defendemos que a Justiça penal seja vista como um mínimo. Isso propicia expansão desenfread­a dos braços da Justiça penal. O sistema penitenciá­rio brasileiro é um inferno e vai explodir. Essa é a cruzada que a gente tem que resolver. O IBCCRIM está atento a como o sistema da Justiça é racista. Racista aqui no Tribunal de Justiça, porque não reflete a sociedade brasileira.

Temos de ter compromiss­o com os direitos humanos e a construção de um Brasil com uma Justiça Penal menos seletiva, cruenta e racista

Quando o presidente sinaliza indicar mais um homem branco ao STF, ele dá as costas a essa discussão?

Ele se mostra muito menos comprometi­do do que seria o esperado. Muito menos.

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Presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais e sócio-fundador do escritório Kehdi Vieira. Doutor e mestre em direito processual penal pela USP, é formado em direito e mestre em direito constituci­onal pela PUC-SP.
Karime Xavier/folhapress Renato Vieira, 47 Presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais e sócio-fundador do escritório Kehdi Vieira. Doutor e mestre em direito processual penal pela USP, é formado em direito e mestre em direito constituci­onal pela PUC-SP.

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