Folha de S.Paulo

Não visite nossa cozinha, visite nosso banheiro

- Marcos Nogueira folha.com/cozinhabru­ta

Nesta semana, ficamos sabendo que 35,4% dos restaurant­es que entregam pelo ifood na cidade de São Paulo são dark kitchens.

Ou seja, operações que não atendem in situ, apenas preparam a comida e a despacham por motoqueiro­s. Os restaurant­es fantasmas ocupam, tipicament­e, galpões anônimos e feiosos.

Há um longo rol de objeções possíveis às dark kitchens. Muitas incorrem em algum tipo de falsidade ideológica. Fazem o cliente imaginar uma casa com tradição, a pizza do nonno, receitas de gerações e ilusões afins —quando tudo se resume a um investidor astuto que alugou um quadrado num barracão com telhado de eternit.

A concorrênc­ia põe em desvantage­m os restaurant­es com serviço presencial. Sem os custos de garçons, pratos, taças e talheres, com o aluguel barato, as dark kitchens praticam preços muito inferiores.

Mas, enfim, é a vida. Não há nada ilegal nisso.

Uma das críticas mais contundent­es, aliás, diz respeito ao limbo legal em que essas cozinhas operam. A Câmara paulistana aprovou, no ano passado, um pacote de regras, mas ainda há um monte de coisa sem regulament­ação.

A opacidade da dark kitchen —não à toa, os termos que a definem remetem a algo obscuro ou misterioso— é um ponto frequentem­ente objetado.

Alega-se, por exemplo, que o cliente não faz ideia de que se passa na cozinha. Se é limpa, se é minimament­e salubre. Aí eu rebato: e nos restaurant­es das antigas? Alguém sabe?

Em São Paulo, desde 1994, os restaurant­es são obrigados a pregar na parede uma placa com a frase “visite nossa cozinha”.

Na posição de cliente, eu nunca olhei para a placa e pensei: “Boa ideia, vou lá visitar”. Não conheço ninguém que o tenha feito. Nem minha mãe, obcecada por limpeza, cogitou visitar cozinha alguma.

Ninguém visita “nossa” cozinha porque ninguém quer estragar o programa de comer fora. Verdadeiro como todo bom lugar-comum, o coração não sente o que os olhos não veem. A gente deixa passar batido um monte de sinais de pouco asseio. A gente gosta da comida, a gente gosta do lugar, a gente não quer saber.

Ademais, visitar a cozinha perturbari­a o funcioname­nto do restaurant­e e o seu próprio jantar. Você precisaria cobrir a cabeleira com uma touquinha ridícula. Estaria sob risco de acidentes com panelas borbulhant­es num espaço diminuto. Furada total.

Na condição de jornalista, já visitei muitas cozinhas. Sempre com planejamen­to prévio, tudo muito controlado. Ainda assim, vi coisas que gostaria de poder desver. Um tostão de conselho: deixe a fiscalizaç­ão para os fiscais. Se o restaurant­e é tão encardido que incomoda, pare de frequentá-lo. Expor-se ao horror sanitário não vai te fazer bem.

Se você faz questão de uma medida confiável da higiene, visite o banheiro do lugar. Quando ele é sujo, a cozinha também é. Outro lugar-comum que não costuma falhar.

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