Folha de S.Paulo

Benta agiu com rebeldia ao pedir para ser expulsa do Recolhimen­to da Santa Casa da Misericórd­ia

- MÁTRIA BRASIL Luciana Gandelman APOIO EDITORA

Em 1717, os administra­dores da Santa Casa da Misericórd­ia da Bahia se reuniram para discutir o caso de uma menina órfã, Benta Pereira de Brito.

De acordo com o provedor da instituiçã­o e coronel Gonçalo Ravasco Cavalcante de Albuquerqu­e, ela estava resoluta em seu pedido para ser expulsa do Recolhimen­to e voltar para a casa de sua mãe.

O pedido de Benta não era comum. Nessa época, havia apenas três “estados” nos quais os indivíduos se conservava­m

“em graça de Deus”: o matrimonia­l, o religioso e o celibatári­o. Para as mulheres, os dois primeiros atendiam aos preceitos da vida cristã, à honra e ao estatuto social das famílias.

Da infância à maturidade, as mulheres que não dispunham da tutela masculina, como viúvas sem posses e órfãs, mesmo apenas do pai e com mãe viva como Benta, eram considerad­as vulnerávei­s, tornando-se objeto de medidas protetivas e ações caritativa­s das Santas Casas da Misericórd­ia.

Fundadas em Portugal pela rainha Dona Leonor em 1498, as Santas Casas da Misericórd­ia se espalharam por todo o império português. Eram irmandades leigas, restritas a homens ricos que fortalecia­m seus poderes no governo local por meio da realização de obras de caridade, como a administra­ção de casas voltadas para o acolhiment­o de meninas órfãs.

Salvador, como capital e principal entreposto comercial do Brasil, teve a primeira Santa Casa a abrigar um Recolhimen­to para meninas órfãs, estabeleci­do com o legado do financista português João de Mattos de Aguiar. Radicado na Bahia desde a segunda metade do século 17, ele angariou consideráv­el fortuna com engenho de açúcar, fazenda de gado e empréstimo­s a juros.

O extenso rol de missas e obras de caridade no testamento de Mattos de Aguiar demonstra que ele quis aliviar o peso na consciênci­a por meio do financiame­nto da educação de meninas na doutrina católica e nos conhecimen­tos necessário­s para o casamento e a maternidad­e.

Era uma maneira comum de garantir o provimento das Santas Casas da Misericórd­ia no Brasil, cujos doadores tornavam-se provedores e irmãos da instituiçã­o, compartilh­ando sua administra­ção com autoridade­s civis e eclesiásti­cas.

Por se tratar de uma instituiçã­o formada por homens brancos, livres e abastados numa sociedade colonial e escravista, Benta tinha o perfil desejado pela Santa Casa da Misericórd­ia da Bahia: meninas órfãs de pai, filhas de legítimo matrimônio, brancas e cristãs-velhas (sem ascendênci­a judaica), cujas idades as tornavam alvo de preocupaçã­o sobre seu comportame­nto sexual.

Eram direcionad­os às escolhidas recursos para iniciativa­s que as conduziria­m ao que se acreditava serem situações seguras e honestas, como o casamento sacramenta­do pela Igreja. Justamente porque o casamento era a maneira de garantir a estabilida­de social de órfãs, como Benta, que o provedor Gonçalo Ravasco adiou sua expulsão na expectativ­a de que ela mudasse de “parecer e intento”, cumprindo o destino que lhe cabia naquela sociedade colonial.

Diante da irredutibi­lidade de Benta e com receio de que sua atitude pudesse compromete­r a reputação do recolhimen­to e das demais recolhidas, ele sugeriu que a mesa da

Santa Casa votasse pela expulsão dela. E assim foi feito.

Até o momento, não sabemos se Benta conseguiu voltar para a casa da mãe e manter sua honra com tamanha rebeldia. A principal razão é que as vidas dessas meninas aparecem na documentaç­ão quando ingressava­m na instituiçã­o ou quando a deixavam para o casamento.

Sabemos que ela faz parte do grupo de órfãs cujo casamento representa­va para as elites locais a reprodução de seu grupo social, enquanto para a coroa portuguesa garantia a consolidaç­ão da dominação e exploração dos território­s de conquistas, como nos mostra a historiado­ra Leila Algranti.

Uma das belezas da pesquisa histórica acontece justamente quando encontramo­s algum fragmento de vida capaz de nos surpreende­r. Essa situação surgiu para mim na voz de Benta. Ouvida pelos administra­dores, ela repetidas vezes declarou que não queria se casar, como as demais recolhidas eram obrigadas.

E assim, não cedendo em sua vontade, Benta Pereira de Brito saiu do recolhimen­to, dos registros e do nosso conhecimen­to. Ainda assim, sua coragem nos ensina que muitas mulheres, cujas vidas desconhece­mos, foram capazes de resistir aos destinos que lhes tinham sido traçados.

 ?? Veridiana Scarpelli ?? OQUEÉO PROJETO MÁTRIA BRASIL?
A série retrata mulheres relevantes ao longo da história do país, da invasão portuguesa aos dias de hoje. Os textos são assinados por importante­s historiado­ras e escritoras brasileira­s, e terão publicação semanal ao longo de seis meses. A série foi idealizada pela professora do departamen­to de história da Universida­de Federal da Bahia (UFBA) Patrícia Valim, uma das coordenado­ras do projeto.
Veridiana Scarpelli OQUEÉO PROJETO MÁTRIA BRASIL? A série retrata mulheres relevantes ao longo da história do país, da invasão portuguesa aos dias de hoje. Os textos são assinados por importante­s historiado­ras e escritoras brasileira­s, e terão publicação semanal ao longo de seis meses. A série foi idealizada pela professora do departamen­to de história da Universida­de Federal da Bahia (UFBA) Patrícia Valim, uma das coordenado­ras do projeto.
 ?? ?? Luciana Gandelman
Professora do programa de pós-graduação em história da Universida­de Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).
Luciana Gandelman Professora do programa de pós-graduação em história da Universida­de Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).
 ?? ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil