Folha de S.Paulo

Após décadas de silêncio, vítima cria projeto para oferecer acolhiment­o

Abusada pelo tio aos 10 anos, Vanessa fundou instituto em BH depois de confrontar sua família

- MINHA HISTÓRIA VANESSA DO MILA Depoimento a Isac Godinho VEJA LEITURA DRAMÁTICA DESTE TEXTO FEITA PELA ATRIZ CHRIS COUTO folha.com/violenciai­nfantil

“Hoje me entendo como sobreviven­te. Faço desse meu lugar [ativista] um veículo para que percebam a necessidad­e de encarar esse problema [abuso sexual infantil]

Vanessa do Mila

ativista

SÃO PAULO Abusada sexualment­e na infância, Vanessa, 52, passou anos sem conseguir falar sobre o episódio. Quando adulta, entendeu que não tinha culpa pelo acontecido e virou ativista, criando, em 2019, o Mila (Movimento Infância Livre de Abuso).

Vanessa acredita que houve negligênci­a por parte de sua família. Ela diz que, mesmo sem entender tudo o que estava acontecend­o, deu sinais de que vinha sofrendo e ninguém percebeu. Hoje, prefere não usar os sobrenomes de suas famílias e gosta de se identifica­r como Vanessa do Mila.

Com o movimento, engajou-se na luta para que outras não passem pelo mesmo. O Mila, com sede em Belo Horizonte, oferece apoio psicológic­o e jurídico para vítimas e familiares e produz material com foco na prevenção.

No ano passado, ela lançou o livro “O Escuro me Abraça” (ed. Ramalhete, 124 págs.), no qual conta a sua história. A obra serviu de base para o depoimento abaixo.

Se eu pudesse voltar no tempo e me fosse concedido o direito de fazer um pedido, escolheria apagar todos os 365 dias do ano em que fiz dez anos. Foi o ano em que fui abusada sexualment­e dentro de casa, pelo irmão do meu pai.

Da pré-escola até a quarta série fui aluna exemplar. Estudava em um colégio católico que a cada bimestre distribuía medalhas e certificad­os de mérito aos alunos com maiores notas. Recebi dezenas.

Pouco antes dos dez anos, tive que me mudar para a escola estadual onde faria a quinta série. No mesmo ano, menstruei pela primeira vez.

Não estava pronta para a puberdade precoce. Cheguei em casa chorando e disse a minha mãe que havia me machucado. Ela me colocou para tomar banho, me ensinou a usar o absorvente e me colocou para dormir. No dia seguinte, disse: “Você agora é uma moça, precisa tomar cuidado”. Tomar cuidado com o quê? Não entendia o sentido de sangrar três dias por mês nem sabia a diferença de dormir menina e acordar mocinha.

Quando somos crianças, os adultos inventam mil maneiras de nos “prevenir” contra malfeitore­s, mas com crenças que dificultam a identifica­ção desses predadores. Alertam contra estranhos, quando se sabe que quase 90% dos ataques partem de pessoas próximas. Se para adultos já é difícil detectar comportame­ntos abusivos, imagine uma criança entender que aquela pessoa próxima, brincalhon­a, carinhosa, é o seu algoz?!

No meu caso, não havia possibilid­ade de confundir o ato com carinho ou brincadeir­a. Mas era meu tio, não devia ser nada grave ou ruim.

Ele me surpreendi­a sempre pelas costas e me imprensava contra a parede. Com uma das mãos me calava e, com a outra, tocava meus pequenos seios. A dor, o medo e o desespero terminavam quando expelia aquela gosma de cheiro esquisito e sujava minha roupa, me causando nojo e ânsia. Não entendia aquilo.

Só fui entender quando o assunto começou a ser abordado nas aulas de ciências e ganhei de meu pai um livro sobre puberdade. As descoberta­s e lembranças criaram em mim imensa revolta. Fiquei cada dia mais agressiva e arredia, agredia primos e colegas.

Todos os dias eu voltava da escola com o uniforme sujo de xixi e cocô. Tinham que ligar para casa pedindo um uniforme reserva. Minha professora nunca negou pedido para idas ao banheiro. Eu é que nunca pedi, simplesmen­te fazia na roupa. Em casa, acordada, fazia xixi na cama.

Naquele ano, pela primeira vez, fui reprovada na escola. Essas transforma­ções não ligaram o alerta dos meus pais. Aos olhos deles e dos professore­s, eu era apenas uma menina abalada tentando processar a mudança de escola.

Por volta dos 12 anos, os abusos cessaram. Não sei por quantas semanas ou meses tive que fugir dele e me trancar apavorada no banheiro, mas isso é irrelevant­e. Basta uma vez para marcar, principalm­ente uma criança.

Quando eu tinha 21 anos, um câncer levou minha mãe. Ela morreu sem saber o que havia acontecido com aquela menina que tantas vezes encontrou sentada, nas madrugadas, no cantinho do sofá.

Na vida adulta, chamei meu pai e contei tudo. A reação não foi a que eu esperava —quase nunca é—, mas ele procurou o irmão. Primeiro, o abusador negou, mas, depois, “justificou” se valendo do tosco argumento de que “na época não existia isso de pedofilia’’. Ainda disse que, se eu continuass­e revirando o passado, me processari­a, pois eu estava manchando a reputação dele.

Essas palavras despertara­m um furacão de sentimento­s e decidi que não me calaria mais. O julgamento e a condenação vieram implacávei­s, não para ele, mas para mim, por desenterra­r esse defunto.

Na família do meu pai, não somam os dedos da mão os que me defenderam, mesmo de forma discreta e silenciosa. Todos queriam que eu deixasse o passado no passado, mas nem sempre é possível.

Meu único apoio veio da minha companheir­a de vida, também abusada na infância por um amigo da família. Mas entendi então que eu não precisava da aprovação e menos ainda da piedade das pessoas.

O meu grito de liberdade foi a criação, em 2019, do Movimento Infância Livre de Abusos, o Mila. Hoje, me entendo como sobreviven­te. Faço desse meu lugar um veículo para que percebam a necessidad­e de encarar esse problema.

Em 2021, em estado avançado de Alzheimer, meu pai disse que precisava de uma tesoura. Perguntei para quê e aquele olhar sempre perdido me encontrou, num instante único de lucidez. “Quero cortar o fulano das fotos” (me recuso a pronunciar o nome do abusador). No olhar de arrependim­ento enxerguei um pedido de desculpas, o que me deixou com o coração quentinho. Nossa “conta” estava zerada. Ele partiu tranquilo poucos dias depois.

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Alexandre Rezende/folhapress A ativista Vanessa do Mila, em uma livraria de Belo Horizonte

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