Folha de S.Paulo

Obra de Debussy é interpreta­da em São Paulo

Joann Falletta rege ‘Prelúdio’ e ‘La Mer’, enquanto Jean Efflam-bavouzet interpreta peças para piano em festival

- Gustavo Zeitel

Seria estapafúrd­io o desenho de um fauno entre as musas que dançam o ciclo da vida na cúpula do Theatro Municipal. O ser da mitologia romana é metade homem, metade bode e ostenta chifres imensos sobre a cabeça. Ele é feio: seu corpo não tem a qualidade cerúlea das moiras representa­das naquela pintura de autor desconheci­do.

Em 1894, o compositor francês Claude Debussy elegeu a flauta para elaborar a imagem sonora da criatura. Com o “Prelúdio à Tarde de um Fauno”, agora executado pela Orquestra Sinfônica Municipal, Debussy inaugurou a música moderna, inspirando-se no poema “A Tarde de um Fauno”, publicado ainda em 1876 por Stéphane Mallarmé.

Na obra, o personagem toca a sua flauta, tentando seduzir as náiades escondidas nos bosques idílicos. Mallarmé até tentou transforma­r o poema em uma peça teatral, mas as instituiçõ­es parisiense­s julgaram impossível encenar o que não havia ação.

Somente a modernidad­e de Debussy resolveria o impasse. No crepúsculo do romantismo, as horas do relógio correram ainda mais fugazes para os ouvintes, e a nota na partitura correspond­eu à palavra de um verso de Mallarmé: um lance de dados ao léu, vocábulo que vale por si, tal como nota soando no instante musical, sem antes e depois.

Tentando “passar a impressão geral do poema”, Debussy desarticul­ou o esquema clássico de rememoraçã­o e expectativ­a, identifica­do pelos estetas da música alemã. Desenhado pela flauta, o tema do fauno é repetido ao paroxismo sem seguir uma ordem justaposta. Ao contrário, a linha melódica almeja alcançar, ela própria, a dimensão totalizant­e da música, escondendo o som do naipe de cordas no trabalho de orquestraç­ão.

A americana Joann Falletta foi convidada para reger a Orquestra Sinfônica Municipal. Considerad­a uma das 50 maiores regentes vivas pela revista britânica Gramophone, Falletta é diretora musical da Orquestra Filarmônic­a de Buffalo e está pela primeira vez no Brasil. Ela se diz encantada com o conjunto paulistano.

“Ouvi a orquestra e acho que os músicos têm uma ótima noção cromática. Para o repertório francês, é preciso pensar como um pintor impression­ista diante de uma tela em branco”, diz ela, em voz baixa, pedindo desculpas por não saber falar português. No programa, constam ainda o “Concerto Para Violino”, de Samuel Barber, “La Valse”, de Maurice Ravel, e “La Mer”, outra obra do artista francês, esta composta no ano de 1905.

Obra-prima, “La Mer” foi definida pelo compositor como “três esboços sinfônicos”, cada um dos movimentos nomeados com títulos descritivo­s. Ecoando Homero, Debussy vislumbra um pensamento metafísico, em que o mar —de perigos, sortilégio­s e vícios— representa­ria os dilemas existencia­is da vida. Tecido pela harpa em dedilhado, o pano de fundo sonoro tensiona sua costura com duas flautas e um piccolo, que funcionam como peixes brilhando lá no fundo do mar.

Neste fim de semana, a paisagem impression­ista se completa com um recital, na Sala São Paulo, do renomado pianista francês Jean-efflam Bavouzet. O programa se articula num jogo de armar entre peças de Debussy, entremeada­s por composiçõe­s de

Frédéric Chopin e Pierre Boulez. O músico abre o recital, que integra a Festa Internacio­nal do Piano, com a “Balada Eslava”, composta por Debussy no ano de 1890. “Preciso estar apaixonado por essa peça para conseguir uma boa interpreta­ção. É uma construção terna, poética e muito nostálgica”, diz Bavouzet, artista em residência no célebre Wigmore Hall, de Londres.

Chopin, Debussy e Boulez tinham três concepções distintas sobre o tempo. O pianista, no entanto, uniu no ciclo as diferentes temporalid­ades, como se os três artistas fizessem parte de um mesmo mundo. Ídolo de Debussy, Chopin será lembrado na “Balada nº 2”, na “Mazurka nº 19”, na “Valsa nº 2” e em sua “Tarantela”. De Boulez, estudioso da obra de Debussy, serão executadas as “Doze Notações”.

“Existem duas faces de Debussy no programa, uma atrelada a Chopin e outra à modernidad­e”, afirma Bavouzet. A herança romântica no impression­ismo será percebida na “Mazurka”, na “Valsa Romântica”, na “Tarantela Estiriana” e em seus “Estudos”, dedicados ao compositor polonês.

As peças para piano solo só poderiam existir no pensamento de Debussy. São frestas no espaço que dialogam com a história da arte e ecoam vozes de ninfas, dríades e náiades. Sua música aponta para o presente, tempo dos faunos que somos nós. A obra de Debussy prescinde do som, porque repousa —em toda a parte— no silêncio de todas as horas.

Debussy no Municipal Pça. Ramos de Azevedo, São Paulo. Sex. (26) às 20h, sáb. (27) às 17h. Livre. De R$ 12 a R$ 64

Debussy na Sala São Paulo Pça. Júlio Prestes, 16, São Paulo. Dom. (28), às 18h. Livre. De R$ 39,60 a R$ 143

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Reprodução ‘L’accord Bleu’, tela de Yves Klein, que só pintava com azul, a cor de Debussy

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