Folha de S.Paulo

Tudo sobre outras mães

Onda de livros asiáticos sobre a maternidad­e ressaltam o que ela tem de universal e de particular

- Walter Porto

“Quando estávamos andando em grupo num passeio da escola, alguém disse que, já que nasci mulher, com certeza quero ter filhos um dia. Como elas podem pensar dessa forma? É só começar a sair sangue daquele lugar que já se sentem mulheres e, sendo assim, querem dar à luz outra vida. Como conseguem acreditar que isso é uma coisa boa?”

O trecho é do diário da menina Midoriko, uma das personagen­s mais vibrantes do romance “Peitos e Ovos”, da japonesa Mieko Kawakami, estrela literária que chega agora ao Brasil. E não é a única.

Kawakami integra uma leva notável de autoras que discutem a relação de mães e filhas a partir de perspectiv­as asiáticas, uma boa oportunida­de de ampliar ainda mais as fronteiras de um tema que inunda as livrarias brasileira­s.

Questões envolvendo mães e filhas variam radicalmen­te dentro de um mesmo país — afinal, a maternidad­e é um tema tão plural quanto existem pessoas no mundo—, mas há algumas especifici­dades japonesas que Kawakami nota durante entrevista à Folha.

“Podemos dizer que há certa tendência: entre as mães das classes mais abastadas, são mais frequentes o abuso educaciona­l, em que sobrecarre­gam as filhas de estudos e atividades extracurri­culares, e a interferên­cia excessiva na vida das filhas”, aponta a escritora.

Já entre as mais pobres, diz ela, é mais comum a obrigação de crianças de se tornarem cuidadoras de seus familiares vulnerávei­s. “Em ambos os casos, as mães tentam controlar as filhas: as primeiras, tomando a autonomia delas, e as segundas, incutindol­hes sentimento de culpa.”

O livro de Kawakami cria uma teia abrangente de relações. A narrativa é protagoniz­ada por Natsu, aspirante a escritora sem filhos que recebe a visita de sua irmã mais velha, Makiko, com a filha adolescent­e Midoriko, que engatilha lembranças sobre a infância compartilh­ada pelas duas.

Homens são praticamen­te ausentes da obra, que se dedica a pensar como a carga de trabalho doméstica que recai sobre as mulheres e suas filhas pode deixar marcas das quais não se livra por gerações.

“Minha mãe vive trabalhand­o e está sempre cansada, e metade da culpa por ela estar assim é minha. Não, é tudo culpa minha”, anota a garota Midoriko em seu diário. “Quando penso nisso, fico desesperad­a. Quero virar adulta logo, quero trabalhar bastante para poder dar dinheiro para ela. Já que não posso fazer isso agora, quero ser boazinha com ela. Mas não consigo. Às vezes só choro.”

A pesquisado­ra Lais Miwa Higa, que faz doutorado sobre a militância asiático-brasileira na Universida­de de São Paulo, lembra que as relações de mãe e filha nas culturas asiáticas costumam remeter à figura da “tiger mom”, marcada pelo altíssimo nível de exigência e instinto de proteção.

“Quando Michelle Yeoh ganhou o Oscar, em março, eu e minhas amigas asiáticas comentamos que nossas mães iam passar a semana falando ‘e você, quando vai ganhar?’”, brinca a antropólog­a —que sublinha, porém, o perigo de escorregar em estereótip­os ao observar essas caracterís­ticas de forma enclausura­da.

Outra imagem predominan­te nesse tipo de relação é a da mulher calada, de silêncios eloquentes, algo que remete ao delicado “Frio o Bastante para Nevar”, de Jessica Au.

O romance acompanha uma mulher que convida sua mãe a passar férias no Japão, uma terra estrangeir­a para as duas, na expectativ­a sutil de tentar diminuir a distância emocional entre elas. A jovem quer vê-la como uma pessoa, não apenas como uma mãe.

Quem espera um livro com grandes epifanias pode se decepciona­r. “Eu estava buscando uma sensação de vida real, não uma narrativa redonda”, afirma a escritora sobre seu livro curto, recente e premiado. “E a vida em geral tem um fluxo mais bagunçado.”

O que move a protagonis­ta é a vontade de se conectar com a outra. “E conforme caminhamos para o final, ela não necessaria­mente consegue o que quer, mas começa a aceitar o que é essa relação. Que tem uma parte de sua mãe que ela nunca vai entender.”

É algo que toca num ponto inusitado da biografia da própria autora, que é australian­a. Foi depois de escrever o romance que ela mesma des

“Quando um homem escrevia sobre família, no Japão, isso era reconhecid­o como uma obra que tratava da nação. Mas quando uma mulher escrevia sobre família, eram considerad­as meras anotações do seu cotidiano. Quando comecei, muitas escritoras já tinham produzido obras incríveis

Mieko Kawakami escritora

cobriu que sua mãe não tinha nascido em Hong Kong, como sempre supôs, mas crescido lá. Suas raízes estavam na Malásia, mas nunca ocorrera à mãe contar isso a ela.

Paira a mesma sensação de não dito entre suas personagen­s, numa relação de insinuaçõe­s gentis e educadas que, segundo Au, também faz parte de sua própria família.

“Nos termos da cultura em que cresci, você não discorda abertament­e da outra, não diz ‘não’ de forma definitiva. Você fala de um jeito mais indireto, tem que prestar atenção a sugestões sutis, ao que está sendo dito por trás das palavras.”

Essa busca da personagem de Au por desmistifi­car a figura materna vem, não por coincidênc­ia, com a perspectiv­a de ficar grávida em breve —o que multiplica as interpreta­ções possíveis para o livro.

A decisão de formar uma família também perpassa o romance de Kawakami. A autora diz que, no Japão, o julgamento que recai sobre as mulheres sobre engravidar tem passado por uma inversão curiosa.

“Antes, as mulheres tinham que ter um motivo e uma firme determinaç­ão para não ter filhos. Hoje em dia, para ter um filho, também é preciso ter um motivo e uma firme determinaç­ão. Por exemplo, as pessoas dizem para quem decide ter filho: ‘Como você é corajosa! Como você foi arranjar tamanha dor de cabeça?’”

O que interessa é que visões múltiplas sobre a experiênci­a feminina têm se multiplica­do, como se pode ver ainda por duas obras recentes, de origem sul-coreana, que abordam maternidad­e de pontos de vista distintos desses.

“Aos Prantos no Mercado”, da americana Michelle Zauner, é uma coleção desoladora de lembranças da autora sobre sua mãe, morta de câncer, disparadas pelas comidas típicas da Coreia que costumavam dividir; já “Sobre Minha Filha”, de Kim Hye-jin, parte do ponto de vista de uma mulher severa e homofóbica que precisa lidar com a volta da filha lésbica para casa.

Mieko Kawakami tem um resumo contundent­e para o que tem acontecido na cena literária de seu país. “Quando um homem escrevia sobre família, isso era reconhecid­o como uma obra que tratava da nação, mas quando uma mulher escrevia sobre família, eram considerad­as meras anotações do seu cotidiano.”

“Mas quando iniciei a carreira, muitas escritoras contemporâ­neas já tinham produzido obras incríveis. Eu me considero uma felizarda.”

Peitos e Ovos Mieko Kawakami. Ed.: Intrínseca. Trad.: Eunice Suenaga. R$ 79,90 (480 págs.); R$ 54,90 (ebook)

Frio o Bastante para Nevar Jessica Au. Ed.: Fósforo. Trad.: Fabiane Secches. R$ 64,90 (96 págs.); R$ 44,90 (ebook)

 ?? Divulgação ?? Ilustração da capa do romance ‘Peitos e Ovos’, de Mieko Kawakami, feita por Ana Matsusaki para a editora Intrínseca
Divulgação Ilustração da capa do romance ‘Peitos e Ovos’, de Mieko Kawakami, feita por Ana Matsusaki para a editora Intrínseca

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