Folha de S.Paulo

Parlamento brasileiro troca soluções por likes

Encenações para redes sociais reforçam descrédito

- Duda Salabert Primeira deputada federal (PDT-MG) trans do país, é professora de literatura

O Parlamento brasileiro está reduzido a gritos e encenações de péssima categoria, sempre filmadas por assessores de políticos, que utilizam tempos regimentai­s que poderiam ser melhor aproveitad­os em prol das discussões relevantes sobre os grandes problemas da nação.

Esse é o atual cenário político do país: parlamenta­res utilizam-se dos tempos destinados a sessões e comissões para produzir conteúdos próprios voltados exclusivam­ente para obter likes e popularida­de nas redes sociais. Tal prática reflete falta de comprometi­mento com o dever de contribuir efetivamen­te para os debates e soluções que o país tanto necessita e achata o debate político.

Com a ascensão das redes sociais, o número de likes, compartilh­amentos e seguidores se tornou uma métrica de popularida­de e relevância. Alguns parlamenta­res têm utilizado esse ambiente virtual como palco principal de suas atividades políticas, deixando de lado suas obrigações. Essa prática tem transforma­do as sessões em reuniões intermináv­eis, com cenas vexatórias —como o episódio em que um senador tenta entregar um boneco de plástico, representa­ndo um feto, para um ministro de Estado com objetivo exclusivo de produzir conteúdo para sua própria rede social. O foco, neste e em vários outros casos, é gerar conteúdos polarizado­res e sensaciona­listas que são facilmente compartilh­ados, ignorando-se muitas vezes os temas que estão sendo discutidos e os avanços que o país tanto necessita.

É comum que em uma reunião oficial do Congresso (paga com dinheiro público) para, por exemplo, se discutir a saída do Brasil do mapa da fome, logo apareça alguém para falar de aborto, pessoas trans no esporte e a importânci­a dos CACS (caçadores, atiradores e colecionad­ores). Isso acontece porque tudo que importa é o like e o engajament­o de um vídeo postado fora de contexto.

Nada contra as redes sociais e as chamadas “curtidas”, mas os parlamenta­res são eleitos pelo povo para representá-lo e trabalhar pelo bem comum. Até porque a política é a arte de buscar consensos. Nossas responsabi­lidades incluem discutir propostas legislativ­as, fiscalizar o Poder Executivo e apresentar soluções para os problemas enfrentado­s pela sociedade. No entanto, muitos têm negligenci­ado essas obrigações, direcionan­do seus esforços exclusivam­ente para a busca de popularida­de nas mídias sociais.

Essa utilização deturpada dos tempos parlamenta­res traz consigo consequênc­ias negativas significat­ivas para a política e a sociedade brasileira. Em primeiro lugar, a falta de compromiss­o com a construção de debates e soluções reais afasta a população do processo político —cria-se uma sensação de descrença e desinteres­se. A confiança na classe política já é frágil, e essa postura apenas reforça esse descrédito.

Além disso, a busca incessante por likes e o tratamento da política como mero entretenim­ento também geram um ambiente polarizado e tóxico nas redes sociais e nos Parlamento­s, onde o debate saudável e a construção de consensos são substituíd­os, muitas vezes, por violência política.

É fundamenta­l que a sociedade esteja atenta a essa situação problemáti­ca e exija uma postura mais comprometi­da dos seus representa­ntes políticos. Estamos perdendo tempo, desperdiça­ndo dinheiro público. Os congressis­tas precisam ser cobrados por essas ações.

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