Folha de S.Paulo

Reciclagem de almas

Com cautela, todas as manhãs olho com muita atenção a torradeira

- Ricardo Araújo Pereira Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de ‘Boca do Inferno’

Como várias pessoas, tenho algum receio dos perigos que a inteligênc­ia artificial pode trazer. Vi o filme “O Exterminad­or do Futuro” e lembro-me do modo como as máquinas, a certa altura, se organizam para tomar conta do mundo.

Com cautela, todas as manhãs, antes de sair de casa, olho com muita atenção a torradeira para ver se ela aparenta estar mais irreverent­e.

Me tranquiliz­a o fato de as máquinas terem acesso a tecnologia suficiente para criar um exterminad­or indestrutí­vel e para viajar no tempo, mas depois o humanoide tenha de ir consultar a lista telefônica para descobrir a morada de Sarah Connor. Ao que parece, os GPS ficaram do nosso lado.

A inteligênc­ia artificial foi criada pela humanidade. Mas a humanidade, ao que me dizem, foi criada por Deus. Ou seja, assim como Deus criou uma forma de inteligênc­ia, a humanidade criou outra.

É exatamente o mesmo processo. Nós somos a inteligênc­ia artificial de Deus. A humanidade tem tantas razões para temer a inteligênc­ia artificial como Deus tem para temer a humanidade. Ou seja, tem mesmo muitas.

Aqueles primeiros contatos de Deus com os seres humanos, no “Gênesis”, são muito parecidos com os nossos primeiros contatos com o CHATGPT. Ele também tentou falar conosco, nos fez perguntas, nos colocou a trabalhar para ele.

O maior problema que a inteligênc­ia artificial coloca é, me parece, o processo da reencarnaç­ão. Quem acredita em reencarnaç­ão define o conceito como uma reciclagem da alma. A pessoa morre, a alma vai para um centro de gestão de resíduos e depois se converte noutra coisa. Habita outro corpo e anima-o. Pode ser outro ser humano, mas também pode ser um animal ou uma planta.

Mas agora há mais organismos dotados de entendimen­to. Podem ter almas artificiai­s, mas em princípio têm alma.

Isso significa que há mais almas disponívei­s para habitar organismos, e mais organismos disponívei­s para serem habitados. Em vez de migrar a um tigre, minha alma pode reencarnar num smartphone. E talvez a alma do meu tablet que se avariou espere uma vaga para ocupar um recém-nascido.

Com cautela, todas as manhãs, antes de sair de casa, olho com atenção a torradeira para ver se ela se parece com a minha avó. E a verdade é que parece. A minha avó também me fazia o café da manhã.

Começo a ficar inquieto.

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Luiza Pannunzio

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