Folha de S.Paulo

Vovó viu a vulva

Ainda não somos plenamente donas da carne que nos faz quem somos

- Giovana Madalosso Escritora, roteirista e uma das idealizado­ras do movimento Um Grande Dia Para as Escritoras

Minha avó adorava uma cirurgia plástica. Depois de ter feito uma no corpo e uma no rosto, foi recomendad­a pelo médico a não fazer uma terceira. Se repuxasse de novo a face, poderia ficar com a testa muito grande. Não se conformou. Arrumou um cirurgião que topou fazer o procedimen­to. Algumas semanas depois, apareceu com a testa repuxada até o topo do crânio e os olhos tão arregalado­s que não fechavam por inteiro nem quando ela cochilava no nosso sofá, nas tardes de domingo.

Fico pensando como ela estaria hoje, com as propostas de remodelaçã­o estética que agora chegam até a vulva. Ainda bem que vovó só viu a vulva antes da onda da vulvoplast­ia, ou poderia ter transforma­do seu corpo de norte a sul.

Seu caso não é isolado. Minha mãe fez plástica. Eu coloquei silicone. Minha vizinha, minha professora, minha amiga colocaram. Não fazemos parte de uma seita em que só as peitudas se salvarão. Não somos modelos que ganham a vida com seus mililitros. Somos apenas mulheres ordinárias vivendo em um dos países que mais fazem cirurgias plásticas no mundo, onde milhões de mulheres passarão, algum dia, por intervençõ­es estéticas de algum tipo.

Sem falar nas intervençõ­es externas. Mês passado fui visitar uma reserva ecológica. Fiquei chocada ao ver duas mulheres que faziam uma trilha, no meio do mato, de salto alto e jeans skinny. O salto emperrando na terra, o jeans emperrando a tíbia. Cheguei até a pensar que era uma nova modalidade esportiva já que, a cada movimento, deveriam gastar o dobro de calorias que seus maridos – eles, obviamente, estavam usando tênis e moletom.

Talvez, se questionad­as, elas dissessem que gostam de se vestir assim em qualquer ocasião. E esse argumento derruba qualquer outro, afinal, antes de mais nada, é preciso defender a liberdade, historicam­ente privada, de cada mulher fazer com o seu corpo o que bem entender. Empunhá-lo e transformá-lo como bem entender. Botocá-lo como bem entender. No entanto, o que parece pulsar por trás da pele da minha avó, dos meus seios e das tíbias inveterada­s não parece ser o nosso próprio desejo, mas o do outro mascarado como nosso.

Minha avó se separou em uma época em que quase ninguém se separava. Foi uma mulher desquitada e pobre, criando seus filhos sozinha, e marginaliz­ada por isso. Estar bonita e bem vestida lhe ajudava a ser mais respeitada.

Minha mãe conseguiu ascender socialment­e mas, como muitas mulheres, viveu aquele casamento em que da esposa esperava-se que estivesse sempre bela. Eu dei a sorte de nascer em outra época e em outras condições, ainda assim coloquei os dois saquinhos de elastômero não com base no meu critério, mas em comentário­s que ouvia – e agora vai custar caro, física e financeira­mente, fazer outra cirurgia para tirá-los.

Tenho vontade de voltar no tempo e dizer para a minha avó que ela não precisava ter se sacrificad­o tanto. Tenho vontade de voltar no tempo e dizer para minha mãe que ela não precisava ter se sacrificad­o tanto. Tenho vontade de voltar no tempo e dizer o mesmo para mim. E gritar para aquelas duas mulheres no meio do mato: desçam do salto, vocês não precisam disso para serem amadas.

Lá se vão três gerações e é preciso admitir: ainda não somos plenamente donas da carne que nos faz quem somos.

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