Folha de S.Paulo

Substituti­vo do Plano Diretor de São Paulo é enorme retrocesso

Sem apresentar estratégia urbanístic­a, objetivo é promover o setor imobiliári­o

- Nabil Bonduki Professor titular de planejamen­to urbano da USP, foi relator do Plano Diretor Estratégic­o de São Paulo de 2002 e 2014 e é coordenado­r-geral do ForumSP23

Só tem sentido rever o Plano Diretor Estratégic­o de São Paulo (PDE) de 2014, cujo horizonte temporal é 2029, se ele corrigir problemas e distorções identifica­dos na sua implementa­ção. Isso não está ocorrendo.

O projeto de lei da revisão, apresentad­o pela gestão Ricardo Nunes (MDB), não descaracte­riza o PDE, mas agrava alguns problemas, como a ampliação do número de garagens nos eixos de transporte coletivo —sem ser suficiente­mente ousado para enfrentar questões urgentes, como a emergência climática e a carência habitacion­al.

Já o substituti­vo do relator, vereador Rodrigo Goulart (PSD), é muito pior, um enorme retrocesso. Praticamen­te anula a estratégia de estruturaç­ão urbana do PDE, propondo uma verticaliz­ação dispersa e sem limites, elitizando ainda mais os eixos de transporte coletivo e compromete­ndo definitiva­mente os miolos dos bairros.

Sem estudos técnicos para respaldar suas propostas, o substituti­vo da Câmara desconside­rou as vozes das associaçõe­s de bairros e os mais de 230 estudos e pesquisas apresentad­os nos fóruns SP21 e SP23, promovidos por entidades profission­ais e acadêmicas, assumindo, sem pudor, a maioria das sugestões da Associação Brasileira das Incorporad­oras (Abrainc).

Urge evitar a aprovação desse substituti­vo, a toque de caixa, pela base governista do Legislativ­o. É necessário mais tempo para, em um processo transparen­te de estudos e debates, promover uma revisão que promova os ajustes necessário­s no PDE —em vez de agravá-los. Este artigo é curto para uma análise detalhada do substituti­vo e para apresentar soluções que possam ser pactuadas para corrigir os problemas identifica­dos, mantendo a estratégia urbanístic­a do Plano Diretor Estratégic­o.

Ela está baseada no adensament­o populacion­al no entorno imediato do transporte coletivo para desestimul­ar o uso do automóvel, ampliar a oferta de habitação de padrão médio e popular, aproximar a moradia do emprego e promover o uso misto e a fachada ativa.

Nessa zona, com raio de 600 m em volta das estações de metrô e trem e de até 300 m ao longo dos corredores de ônibus, os edifícios não têm limite de altura, mas a área computável média dos apartament­os fica limitada a 80 m2, com uma garagem por unidade. Em compensaçã­o, os miolos dos bairros ficam mais protegidos, com a altura dos edifícios limitada a, no máximo, oito pavimentos e menor adensament­o.

Esse ordenament­o é descaracte­rizado pelo substituti­vo que, no artigo 23º, estende o raio no entorno das estações para 1 km e a faixa nos corredores para 450 m, mais do que dobrando a zona de verticaliz­ação sem limite. Se aprovado, teríamos em quase todo o centro expandido edifícios com a volumetria da atual avenida Rebouças.

Ademais, nesse amplo território, seriam permitidos apartament­os com mais de 120 m2, mediante pagamento de uma outorga onerosa mais elevada (art. 79º) e com mais garagens, uma a cada 60 m2 (art. 80º).

Isso contraria os objetivos do PDE nos eixos de transporte, pois gera densidades populacion­ais mais baixas, mais carros e apartament­os mais caros, ampliando a elitização dessa região. No pouco que sobrar dos miolos dos bairros, o art. 38º possibilit­a elevar o coeficient­e de aproveitam­ento para três (hoje é dois).

Várias portas são abertas para a verticaliz­ação e/ou aumento de coeficient­es: como no Arco Tietê, mesmo sem projeto urbanístic­o —ao contrário do que determina o PDE (art. 22º) e com a alteração das normas referentes à Cota de Solidaried­ade (art. 36º), à Transferên­cia do Direito de Construir (Art. 41º) e às Zeis (Zonas Especiais de Interesse Social, art. 19º). O art. 37º permite o pagamento da outorga onerosa por meio de execução de obras.

Outra excrescênc­ia, desconheci­da na teoria urbanístic­a, é a criação da zona de concessão. Nos parques, cemitérios, mercados e equipament­os concedidos ao setor privado, as normas de uso e ocupação do solo poderão ser alteradas, levando à descaracte­rização desses espaços públicos em benefício dos concession­ários.

O substituti­vo não promove uma revisão intermediá­ria do PDE, com ajustes para corrigir problemas identifica­dos na implementa­ção, mas o altera inteiramen­te como se fosse um novo Plano Diretor, com o objetivo de facilitar a promoção imobiliári­a sem sequer apresentar uma estratégia urbanístic­a para a cidade de São Paulo. Não pode ser aprovado.

[ Outra excrescênc­ia, desconheci­da na teoria urbanístic­a, é a criação da zona de concessão. Nos parques, cemitérios, mercados e equipament­os concedidos ao setor privado, as normas de uso e ocupação do solo poderão ser alteradas, levando à descaracte­rização desses espaços públicos em benefício dos concession­ários

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