Folha de S.Paulo

Política não devia ser torcida

Mudanças na dinâmica da informação afetam instituiçõ­es democrátic­as

- Joel Pinheiro da Fonseca Economista, mestre em filosofia pela USP | dom. Elio Gaspari, Celso Rocha de Barros | seg. Camila Rocha, Angela Alonso | ter. Joel Pinheiro da Fonseca | qua. Elio Gaspari | qui. Conrado H. Mendes | sex. Reinaldo Azevedo | sáb. Dem

Não há nada mais raro hoje em dia do que um espírito independen­te. Para onde quer que olhemos, só se veem cheerleade­rs de político.

É uma saída mais fácil: buscar no grupo sua identidade, e defender seu time contra o adversário —esteja ele certo ou errado. Ou melhor: mesmo quando ele estiver errado, dar um jeito de torcer as palavras para que ele pareça certo.

Esse é também o caminho do sucesso: quem é bom nesse jogo pode ter certeza de encontrar audiência e aplausos de uma metade, e o ódio da outra, o que também é uma forma de atenção e dá status.

O modelo mental intuitivo, que muita gente tem a respeito do eleitor, imagina-o comparando os diversos candidatos, buscando suas posições em diversos assuntos e selecionan­do aquele que mais se aproxima de suas próprias crenças.

A realidade, contudo, é quase o oposto disso: o eleitor tem um político de quem ele gosta e muda suas próprias posições em diversas áreas para melhor se adequar ao que esse líder propõe. (A esse respeito, recomendo o livro “Democracy for Realists”, de Christophe­r Achen e Larry Bartels, (Princeton University Press, 408 págs., R$ 108,85).

Somos quase que programado­s para ser assim. O ser humano se distingue dos outros animais justamente por formar grandes coalizões entre indivíduos que não são parentes sanguíneos. Para isso, utilizamos símbolos e palavras que designam pertencime­nto a um mesmo grupo. E o grupo tem seus líderes, que devem ser defendidos contra o odioso inimigo externo.

Mas essa adaptação evolutiva humana está, agora, colocando em risco nossas instituiçõ­es democrátic­as e liberais. Isso porque o ambiente em que estamos inseridos mudou: antes éramos quase todos espectador­es passivos de poucas fontes. Os movimentos sectários eram limitados.

Hoje, não só escolhemos um cardápio ilimitado de fontes como também somos emissores de informação: podemos nos afastar e nos odiar até o ponto de ruptura.

Formar um posicionam­ento próprio, imparcial, sempre foi mais difícil do que apenas se deixar levar pela manada. Da mesma forma que chegar ao conhecimen­to objetivo —via método científico— é mais difícil do que se deixar levar por impressões pré-concebidas. É quase antinatura­l.

Ou o controle vem de fora, partindo de uma instância mais poderosa que consegue limitar nossa ação, ou tem que vir de dentro. Pela própria natureza fluida da tecnologia e pelo nosso apreço à liberdade de pensamento como um valor fundaciona­l, ela não virá de fora. A regulação pode dar conta de alguns abusos mais graves, mas não resolverá o problema da polarizaçã­o.

No passado, uma minoria de indivíduos mais bem formados alimentava o restante com uma dieta informacio­nal vinda de cima. O sonho da regulação é também o sonho de que essa minoria possa voltar a falar sem ser frontalmen­te questionad­a. Não vai acontecer. Os problemas advindos do poder dos indivíduos dependerá de eles crescerem também em virtude.

Falar em virtude parece um pouco idealista demais. Mas é importante lembrar que não apenas os teóricos da política normativa —como Platão, Aristótele­s e toda a tradição medieval— como o próprio Maquiavel, que inaugurou a visão da política como ela é, jamais abriram mão da distinção entre um povo virtuoso e um corrompido.

O povo corrompido logo perde sua liberdade, seja para o conquistad­or externo ou para o tirano interno. Como desenvolve­r essa virtude não em alguns poucos, mas na quase totalidade da população, quando tendências fortes de nossa natureza empurram na direção contrária, é o grande desafio das democracia­s liberais. Essa deveria ser nossa “torcida”; e os que buscam miná-la de ambos os lados, nossos inimigos.

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