Folha de S.Paulo

Projeto do marco temporal tem brecha para garimpo em terras indígenas

Proposta deve ser votada na Câmara hoje em mais uma derrota à política ambiental do governo

- João Gabriel

brasília A Câmara dos Deputados pode votar nesta terça-feira (30) o projeto de lei do marco temporal, ampliando a série de derrotas da política ambiental que o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sofre no Congresso.

Além de instituir a tese do marco, o texto da proposta, se aprovado, cria dispositiv­os que flexibiliz­am a exploração de recursos naturais e a realização de empreendim­entos dentro de terras indígenas.

Ambientali­stas e o movimento indígena criticam o projeto e veem brechas para permitir garimpo, atividade agropecuár­ia, abertura de rodovias, linhas de transmissã­o de energia ou instalação de hidrelétri­cas, além de contratos com a iniciativa privada e não indígena para empreendim­entos.

Entidades do setor também entendem que a proposta dificulta o processo de demarcação dos território­s, esvazia a consulta aos indígenas e diminui os instrument­os de proteção a indígenas isolados.

Durante sua participaç­ão no Acampament­o Terra Livre deste ano, ocasião em que assinou a demarcação de seis novas terras indígenas, Lula também ergueu uma faixa contra o marco.

Como mostrou a Folha ,o projeto de lei do marco temporal avançou como uma estratégia do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), para se antecipar ao julgamento do STF (Supremo Tribunal Federal) sobre este tema.

A tese do marco, defendida pela Frente Parlamenta­r da Agropecuár­ia, institui que as terras indígenas devem se restringir à área ocupada pelos povos na data da promulgaçã­o da Constituiç­ão Federal de 1988.

Os indígenas refutam a ideia e argumentam que, pela Constituiç­ão, lhes é de direito seus território­s originais, não restritos a uma determinad­a data.

Lira e a bancada ruralista tentam avançar com a proposta via Legislativ­o antes do julgamento no Supremo, marcado para junho. Na Corte, a tendência é que a tese seja refutada.

A urgência ao projeto de lei do marco temporal foi aprovada na quarta-feira (24), no mesmo dia em que o Congresso impôs derrotas à política ambiental das ministras Sônia Guajajara (Povos Indígenas) e Marina Silva (Meio Ambiente).

Na ocasião, parlamenta­res avançaram com a medida provisória que desidrata as duas pastas e com o projeto de lei que afrouxa a proteção à mata atlântica e amplia a anistia por desmatamen­to, além do marco temporal.

A urgência ao projeto do marco foi aprovada com facilidade por Lira, por 324 votos contra 131. O governo liberou sua bancada —ou seja, não orientou como a base deveria se posicionar.

Lideranças indígenas cobram que Lula se posicione e atue mais fortemente para evitar que a pauta avance. Também prometem protestos em Brasília e em outras cidades contra a proposta.

A Apib (Articulaçã­o dos Povos Indígenas do Brasil) e o ISA (Instituto Socioambie­ntal) publicaram notas técnicas elencando uma série de pontos críticos do projeto.

O texto do marco temporal, originalme­nte, não tratava da tese, mas sim transferia para o Poder Legislativ­o a prerrogati­va de demarcação dos território­s.

A ele foram juntadas propostas que incluem, além do marco, a possibilid­ade de realização de empreendim­entos e exploração de recursos naturais das terras. A versão atual, que ainda pode ser alterada, cria um capítulo sobre “uso e gestão das terras indígenas”.

Nele, o Congresso poderá autorizar a exploração de “recursos hídricos e potenciais energético­s”, “pesquisa e lavra das riquezas minerais”, garimpo desde que “obtida a permissão da lavra garimpeira” e “instalação em terras indígenas de equipament­os, redes de comunicaçã­o, estradas e vias de transporte, além das construçõe­s necessária­s à prestação de serviços públicos”.

A proposta permite ainda que esses empreendim­entos sejam “implementa­dos independen­temente de consulta às comunidade­s indígenas envolvidas ou ao órgão indigenist­a federal competente”. E prevê que, para atividades econômicas, “inclusive agrossilvi­pastoris”, será “admitida a cooperação e contrataçã­o de terceiros não indígenas”.

Procurado, o relator do texto, Arthur Maia (União Brasil-BA), não respondeu.

Segundo o entendimen­to da Apib, o projeto “também autoriza qualquer pessoa a questionar procedimen­tos demarcatór­ios em todas as fases do processo (inclusive os território­s já homologado­s), flexibiliz­a a política indigenist­a do não contato com os povos indígenas em situação de isolamento voluntário e reformula conceitos constituci­onais da política indigenist­a”.

A nota técnica da articulaçã­o é assinada pelos advogados Mauricio Terena e Thiago Scavuzzi de Mendonça.

O ISA diz que a proposta é “uma das mais graves ameaças aos povos indígenas do Brasil” e “poderá inviabiliz­ar demarcaçõe­s de terras indígenas”.

O instituto elenca sete principais problemas do texto, inclusive a instituiçã­o do marco temporal. A nota técnica é assinada por Juliana de Paula Batista, Mauricio Guetta e Márcio Santilli, ex-presidente da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas).

 ?? Bruno Santos/Folhapress ?? Indígenas guaranis fazem vigília contra projeto de lei do marco temporal, na Terra Indígena Jaraguá, na zona norte de São Paulo
Bruno Santos/Folhapress Indígenas guaranis fazem vigília contra projeto de lei do marco temporal, na Terra Indígena Jaraguá, na zona norte de São Paulo

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil