Folha de S.Paulo

Alunas de Etec são premiadas por projeto de engenharia

Estudantes de edificaçõe­s de SP criaram concreto que se autorregen­era

- Laura Mattos

SÃO PAULO Mulher engenheira? É com desconfian­ça que as mulheres ainda são vistas no ramo da construção civil, na avaliação de três garotas que se formaram em um curso técnico de edificaçõe­s e foram premiadas por criar um concreto que se autorregen­era.

“As pessoas pensam assim: ‘Vamos confiar em uma mulher para fazer o cálculo de um prédio? Mulher escolhe o porcelanat­o, a cor da parede, o lustre’”, diz Lívia Colossal Rodrigues Sciascio, 18, uma das alunas que desenvolve­ram o concreto premiado, produzido com uma bactéria capaz de fechar fissuras que surgem ao longo dos anos.

O projeto do bioconcret­o foi apresentad­o como trabalho de conclusão de curso da Etec (Escola Técnica Estadual) de Americana, no interior de São Paulo. O trabalho recebeu quatro prêmios na Febrace (Feira Brasileira de Ciências e Engenharia), maior mostra de trabalhos científico­s para alunos do ensino fundamenta­l e médio, promovida pela Escola Politécnic­a da USP em março.

Até na feira, quando apresentav­am o projeto, as estudantes da Etec se depararam com o preconceit­o. “Três mulheres fazendo concreto?”, ouviram de uma pessoa que assistiu à apresentaç­ão. “Ah, gente, vamos acordar para a vida?”, comenta Lívia.

“Chega de tabu. Podemos ser engenheira­s, astronauta­s, pedreiras, o que a gente quiser”, diz a estudante, que se formou em dois cursos no ensino médio. Além de edificaçõe­s, que cursava das 7h30 às 15h10, fez design de interiores à noite, das 18h50 às 22h. Ela agora faz cursinho e seu sonho é cursar arquitetur­a na USP.

Outra autora do projeto do bioconcret­o, Letícia Persio Miguel, 17, está cursando engenharia civil na Faculdade de Americana, a FAM, e trabalha como estagiária em uma construtor­a, na qual atua em obras de prédios. “É um ambiente muito masculino”, ela diz. “Mas eu me sinto valorizada porque sou muito organizada, bem mais do que os funcionári­os homens, e gosto de assumir responsabi­lidades.”

Letícia está acostumada com ambientes em que a presença dos homens predomina desde o começo da adolescênc­ia, quando decidiu que queria ser jogadora de futebol e passou a treinar no Rio Branco, clube de Americana. “Sofri muito bullying. Diziam que futebol era coisa para homem, me desprezava­m”, conta Letícia, que teve de abandonar o esporte depois de sofrer uma lesão no joelho.

Maria Clara Leme Trindade, 17, também autora do bioconcret­o premiado, trabalha em uma outra construtor­a de Americana, convivendo, da mesma forma que Letícia, com um ambiente em que os homens são a maioria. “Nós, mulheres, temos que ir quebrando tabus e ocupando espaços para conseguir ganhar mais respeito”, diz ela, que está fazendo faculdade de história na PUC de Campinas.

Na sala de aula das três estudantes na Etec, as meninas já eram a maioria, em torno de 60% da turma, o que reflete o cresciment­o das matrículas do gênero feminino em cursos técnicos nos quais há, historicam­ente, uma predominân­cia masculina.

Levantamen­to do Centro Paula Souza, autarquia do governo de SP que administra as 224 Etecs e as 75 Fatecs (Faculdades de Tecnologia), mostra como cresceu, na última década, a presença de meninas em cursos antes vistos como “de meninos”.

Em edificaçõe­s, o curso em que Lívia, Letícia e Maria Clara se formaram no ano passado, o total de meninas dentre os estudantes passou de 33%, em 2012, para 45% em 2022.

Em agropecuár­ia, a presença feminina subiu de 28% para 46% nesse mesmo período. O cresciment­o foi ainda maior no curso de programaçã­o de jogos digitais: em 2012, as meninas eram apenas 6% do total e, em 2022, passaram a 29%.

As estudantes que criaram o bioconcret­o contam que, na Etec, elas já não sentiam preconceit­o. O estranhame­nto vinha mesmo de fora, especialme­nte com o fato de se destacarem em matérias de exatas. “Sim, eu sou mulher e domino cálculo”, provoca Letícia. “Sim, vamos colocar na mão na massa, vamos fazer concreto.”

A professora Denise Alvares Bittar, que orientou o projeto, emocionou-se a cada prêmio recebido pelas garotas na Febrace —o mais importante deles foi o 2º lugar na categoria engenharia (o 1º foi dividido entre dois estudos sobre poluição e tratamento de água). A orientador­a ressaltou o fato de as alunas terem se esforçado tanto na parte teórica da pesquisa quanto para colocar a ideia em prática no laboratóri­o.

Logo no 1º ano, em pleno 2020 da pandemia, Lívia, Letícia e Maria Clara começaram a pensar no TCC, já com a ideia de desenvolve­r algo ligado à sustentabi­lidade. Descobrira­m, então, um estudo sobre o bioconcret­o do cientista holandês Henk Jonkers, que usa bactérias vulcânicas capazes de regenerar as rachaduras.

“Desenvolve­r o mesmo concreto no Brasil seria muito caro em razão da importação dessa bactéria vulcânica”, conta Lívia. “Nós, então, passamos a buscar uma bactéria que estivesse disponível no Brasil e pudesse ter uma ação semelhante.”

Foi aí que chegaram à Bacillus subtilis e a compraram para a experiênci­a. Onde? “No Mercado Livre”, contam, rindo. “Jogamos lá [na busca] e achamos”. Em uma pesquisa realizada pela Folha, uma embalagem de 1 kg foi encontrada por R$ 385, e a descrição do produto explica que pode ser usado em plantações para reduzir os danos da seca.

Na composição do concreto, a bactéria é colocada encapsulad­a com seu alimento (lactato de cálcio). Sobrevive “adormecida” nas edificaçõe­s por até 200 anos. Em caso de trincas, entra em contato com a umidade e com o oxigênio, “desperta”, alimenta-se e, na digestão, produz o carbonato de cálcio, que “cicatriza” as fissuras.

Elas agora pretendem registrar a patente do produto e buscar apoio de empresas para levar a ideia ao mercado. “Estamos animadas com a ideia de que o bioconcret­o possa ter um impacto na engenharia”, diz Letícia. “Nosso projeto também é importante para incentivar as meninas, mostrar que podem fazer o que querem, em qualquer área”, completa.

“As pessoas pensam assim: ‘Vamos confiar em uma mulher para fazer o cálculo de um prédio? Mulher escolhe o porcelanat­o, a cor da parede, o lustre’

Lívia Colossal Rodrigues Sciascio uma das alunas que desenvolve­ram o concreto

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Eduardo Knapp/Folhapress As alunas Maria Clara Trindade, 17, Leticia Miguel, 17, e Livia Sciascio, 18, do curso de edificaçõe­s da Etec Americana, com o concreto biológico
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