Folha de S.Paulo

Linha Direta repete tom grotesco do original e alimenta o medo

- Mauricio Stycer Jornalista e crítico de TV

A apelação, a baixaria e o grotesco estão presentes na televisão brasileira desde os primórdios, ainda na década de 1950. Quadros de namoro e casamento, atrações ao estilo “Esta É a Sua Vida”, humorístic­os e programas de auditório sempre flertaram com o mau gosto e o sensaciona­lismo.

Mas, de todos os tipos de apelação na TV, o que sempre provocou mais preocupaçõ­es e danos foram as experiênci­as de mistura de jornalismo com entretenim­ento. Do pioneiro Jacinto Figueira Júnior, o Homem do Sapato Branco, na década de 1960, a Luiz Bacci, nos dias atuais, a informação apresentad­a em chave de espetáculo tem causado variados danos, de arranhões na credibilid­ade dos veículos à disseminaç­ão de pânico.

Este “telejornal­ismo dramático”, como caracteriz­ou a pesquisado­ra Ligia Lana em “Para Além do Sensaciona­lismo”, exibe entre os seus piores exemplos o programa Linha Direta, criado em 1990 por Helio Costa e relançado nove anos depois pelas mãos do diretor de novelas e shows Roberto Talma em parceria com o jornalista Marcelo Rezende.

Baseado na simulação de crimes e associando a sensação de inseguranç­a do cidadão comum à incompetên­cia da polícia e à inoperânci­a da Justiça, como mostrou o pesquisado­r Kleber Mendonça, Linha Direta se tornou o mais célebre exemplo de espeta cula riz aça oda violência na TV.

Só na aparência, porém, o programa nasceu com o objetivo de criticar e aperfeiçoa­r as instituiçõ­es, observa Mendonça no livro “A Punição pela Audiência” —e Marcelo Rezende confirma em suas memórias, “Corta Pra Mim”.

Na realidade, o Linha Direta foi repaginado em 1999 devidoà necessidad­e de recuperara audiência que a Globo ha- via então perdido para o sensaciona­lista Ratinho, no SBT.

Aquele é um período de grandes transforma­ções, com migração das classes AeB para a TV por assinatura e de menos fidelidade à Globo pelas classes mais populares.

Coincident­emente, o relançamen­to do Linha Direta também parece uma resposta às muitas transforma­ções nos hábitos de ver TV nos últimos dez anos, em especial uma fuga dos espectador­es da TV aberta rumo ao YouTube, TikTok, plataforma­s de streaming e outras formas de consumir programas de true crime. Mas isso não foi dito.

Como anunciou o novo apresentad­or, Pedro Bial, no primeiro episódio, os objetivos do programa continuam os mesmos da década de 1990: “Grande parte da população vive um dia a dia de inseguranç­a extrema e, assim como o medo está presente na vida de grande parte dos brasileiro­s, também há a frustração pela Justiça não realizada”.

Em outras palavras, o programa retorna para alimentar o medo, com cenas canhestras de simulação de crimes com uma trilha sonora dramática no meio. Com todo respeito, isso é tudo menos jornalismo.

O novo velho Linha Direta abusou deste recurso na intermináv­el reconstitu­ição do caso Eloá, na estreia. Ao final, por poucos minutos, houve algum espaço para reflexão crítica sobre os erros da polícia e da imprensa no episódio.

Mas, aparenteme­nte com receio de ferir suscetibil­idades, o mesmo Bial que prometeu “rigor, cuidado e honestidad­e para fazer o melhor para honrar a sua confiança”, não informou ao público o nome da apresentad­ora de televisão —Sonia Abrão— que se colocou como negociador­a.

A Globo aposta na lembrança difusa que o espectador guarda da antiga e bem-sucedida atração, mas limpandoa de suas principais impurezas. Ao final, volta a oferecer ao público a oportunida­de de denunciar um foragido, acusado de um crime violento.

Tudo embalado no discurso polido e bem-intenciona­do: “A volta de um programa que fez muito sucesso no passado e que agora, depois de 15 anos fora do ar, volta modernizad­o, atualizado, cumprindo o papel social que a gente acredita cumprir”, disse Bial.

É uma iniciativa difícil de entender, até por que a emissora tem condições de fazer programas jornalísti­cos sobre casos policiais com qualidade muito maior. A opção pelo resgate do Linha Direta parece mais um caso em que a história se repete como farsa.

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Fábio Rocha/Divulgação Detalhes do cenário do novo Linha Direta

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