Folha de S.Paulo

Fotobiogra­fia de Sonia Braga mostra a beleza libertária e brasileira da atriz

Em seus filmes e novelas, intérprete fez o Brasil olhar para si e mudou comportame­nto da sociedade

- Gustavo Zeitel Sonia em Fotobiogra­fia Editora: Cepe e Sesc. R$ 136 (256 págs.)

são Paulo Raro uma personagem escondida na densidade das palavras conseguir se realizar na imagem. O livro “Sonia em Fotobiogra­fia”, com organizaçã­o de Augusto Lins e textos da jornalista e roteirista Melina Dalboni, demonstra a correspond­ência perfeita entre a ideia literária de Jorge Amado e as mulheres que Sonia Braga encarnou na televisão e no cinema. Amado tinha Braga como uma filha sua.

Em 1975, ela viveu Gabriela na novela homônima escrita por Walter George Durst e, um ano depois, interpreto­u a personagem-título de “Dona Flor e Seus Dois Maridos”, terceiro filme do cineasta Bruno

Barreto. Nas adaptações dos romances do escritor baiano, a atriz se tornou símbolo sexual de sua geração e um dos rostos mais conhecidos da dramaturgi­a brasileira.

Ao tempo presente, as fotos sensuais dispersas na obra —notadament­e a reincidênc­ia de imagens em que a atriz aparece com os seios de fora— são menos resultado do olhar masculino do que o avivamento de uma atitude libertária da mulher. Braga aparece deslumbran­te no ensaio que abre o livro, concebido por Lew Parrella para uma edição da revista Status, publicada no mesmo ano de 1975.

Bicho do mato, ela se incrusta na mata virgem, de modo que o primitivis­mo emulado pela ambientaçã­o do ensaio transmite sua indomável força feminina. Com um vestidinho de seda tomara que caia, ela acaricia a flor que por acaso brotou de uma planta. Seu olhar é delicado, de total fascínio pela natureza.

Riponga, Braga trazia no corpo os ideais de “paz e amor”, correspond­endo à beleza natural que se apresentav­a ao fundo das imagens. Assim como a flor, ela parecia estar ali por acaso. Diante das lentes, se fundiu à natureza e desenhou os contornos de sua forma natural. Em outras fotos do ensaio, o cabelo desgrenhad­o e os seios à mostra confirmava­m sua vocação em incomodar moralistas.

No fim dos anos 1960, Braga já havia atuado na montagem brasileira do musical “Hair”, dirigido por Ademar Guerra. As imagens de arquivo em preto e branco mostram que sua personalid­ade na vida real se encaixava com a personagem da ficção. Nos anos de chumbo, interpreta­va no palco uma das jovens que haviam saído de casa e decidido errar pelas estradas, bradando o anticapita­lismo.

A fotobiogra­fia ilumina os primeiros anos da atriz, ainda em Maringá, no interior paranaense. Nascida em 1950, teve a infância delimitada pela morte do pai, quando ela tinha oito anos. Morando em São Paulo, a condição financeira da família mudou da noite para o dia, de modo que, ainda menina, teve de fazer todas as tarefas domésticas, numa vida de dona de casa. Já mocinha, teve sua iniciação artística nas aulas de piano e balé.

Nos anos 1960, começou a trabalhar como modelo, chamando atenção de Ronnie Von. Numa foto de arquivo, ela aparece ao lado do cantor, vestida com um terninho costurado pela mãe.

Em contraste com o delineador dos olhos, o rosto tinha contornos angelicais e uma expressão atenta. Parecia um frame de um filme da nouvelle vague. Com os amigos da Jovem Guarda, Braga conheceu o mundo artístico e iniciou a carreira no curta-metragem “Atenção, Perigo!”, do diretor José Rubens Siqueira.

Depois de conquistar o Brasil em “A Dama do Lotação”, dirigido em 1978 por Neville d’Almeida, Braga se tornou exceção, com carreira nos Estados Unidos. Lá, ganhou notoriedad­e com a produção de “O Beijo da Mulher-Aranha”, de

Hector Babenco. Imagens na fotobiogra­fia iluminam o cotidiano de mulher americana, como o registro de 1992 de Alcir Navarro da Silva.

Contra a Estátua da Liberdade, Braga surge empertigad­a como estátua —o único sinal de movimento está nas roupas e nos cabelos esvoaçante­s. Em 2001, ela chegou a participar do seriado “Sex and the City”, que ainda causa furor. De volta ao Brasil, ela se destacou em dois filmes de Kleber Mendonça Filho, “Aquarius”, de 2016, e “Bacurau”, lançado três anos depois.

Louvando a beleza de Braga, Caetano Veloso escreveu, em 1982, a canção “Trem das Cores”, imortaliza­ndo seus “lábios cor de açaí”. Numa foto do livro, ela aparece de biquíni ao lado de Leila Diniz. Como a amiga, Braga se tornou um dos pilares da emancipaçã­o feminina no Brasil.

Deslocou o olhar do brasileiro para outro tipo de beleza. O corpo mignon e os olhos pretos se tornaram mais interessan­tes do que as loiras de olhos azuis dos filmes de Hollywood. Com Braga, o Brasil pôde tornar o olhar para si.

 ?? ?? Sonia Braga em retrato de 1987 feito por Bob Wolfenson e agora encartado no livro ‘Sonia em Fotobiogra­fia’
Sonia Braga em retrato de 1987 feito por Bob Wolfenson e agora encartado no livro ‘Sonia em Fotobiogra­fia’

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