Folha de S.Paulo

Festa junina

Não dá mais para tolerar a apropriaçã­o e o preconceit­o da quermesse

- Manuela Cantuária Roteirista e escritora, faz parte da equipe do canal Porta dos Fundos

Uma festa junina acontece em um local que os povos antigos chamavam de danceteria. Luzes piscantes, um DJ tocando as músicas mais bombadas no TikTok, moças com camisetas xadrez de botão e com um nó na altura do umbigo. Destoando do ambiente, uma desavisada vestida de caipira encontra sua amiga, que imediatame­nte a arrasta para um canto.

Amiga: “Você surtou? Que roupa é essa que você usa?”

Caipira: “Ué. No evento estava escrito festa junina. E eu não estou vendo uma bandeirinh­a aqui. Nem jantei pensando naquela canjica quentinha, naquele milho verde com a manteiga derretendo por cima. E não tem nada para comer.”

Amiga: “A gente precisa falar sobre este seu look. Em que mundo você está vivendo?”

Caipira: “Tradição é tradição. Este povo é que não sabe aproveitar uma boa quermesse quando tem. Cadê a quadrilha, o casamento na roça?”

Amiga: “Casamento na roça é uma atrocidade. Na maioria dos casos, era uma união forçada. O pai trocava a filha menor de idade por seis cabeças de gado. Esse teatrinho é de extremo mau gosto. A noiva grávida, o noivo tentando fugir, o sogro autoritári­o ameaçando os noivos de morte com uma espingarda. São tantas camadas de violência que eu não sei nem por onde começar.”

Caipira: “Nunca tinha pensado nisso. Mas qual o problema da minha roupa? Um traje junino inocente, poxa.”

Amiga: “Isso é apropriaçã­o cultural. Você está ridiculari­zando o povo campesino. Como é que você me pinta o dente de preto em pleno 2023? Acha engraçada a precarieda­de do sistema de saúde no interior do Brasil? Ainda pinta sardinha na cara, zoando o melasma do trabalhado­r rural que fica embaixo do sol para botar comida no seu prato. Francament­e. A Jéssica está aqui. Você sabe que ela é do interior.”

Caipira: “Então eu mesma pergunto para a Jéssica o que ela acha disso tudo. Agora faço questão de saber se ela fica mesmo ofendida.”

Amiga: “Melhor não comprar esse barulho. Vai para casa, troca de roupa e volta antes que te fotografem e joguem sua foto no Twitter.”

Caipira: “Então fala isso para aquele rapaz estiloso ali, de cinto de fivela e chapéu de caubói. Um gato. Parece o Zé Vaqueiro. E está olhando para cá. Deixa eu fazer uma saudação das damas para ver como ele reage: arra, sô!”

Amiga: “Este aí na verdade é o primo da Jéssica, porra!”

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Silvis

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