Folha de S.Paulo

Israel na encruzilha­da

Netanyahu ameaça implodir plano de paz, provocando um prolongado ciclo de violência

- Demétrio Magnoli Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.

A guerra em Gaza atingiu uma bifurcação. As negociaçõe­s em curso, entre EUA, Israel, Egito e Qatar, para uma longa trégua com troca de reféns por prisioneir­os sinalizam um caminho. O caminho oposto é indicado pelo plano militar de Netanyahu de avançar as forças israelense­s rumo a Rafah. Mais que uma bifurcação conjuntura­l, Israel encontra-se diante de uma encruzilha­da histórica.

A via da trégua negociada aponta, no fim de uma longa e incerta estrada, para a meta da paz regional. Seus três pilares seriam a marginaliz­ação do Hamas, a criação de um Estado palestino e a edificação de um sistema de segurança compartilh­ado entre Israel e os países árabes.

Depois da Guerra dos Seis Dias (1967), os países árabes declararam os “três nãos”, recusando reconhecim­ento, negociaçõe­s e paz com Israel. Hoje, é o contrário: a hostilidad­e ao Irã e às milícias sob seu patrocínio empurram os governos árabes na direção de um acordo com o Estado judeu. Nas conversaçõ­es com Blinken, secretário de Estado dos EUA, Egito, Jordânia, Arábia Saudita e Emirados Árabes ofereceram o esboço de um plano de paz que contempla a segurança de Israel e a reconstruç­ão da Faixa de Gaza. A contrapart­ida que exigem é o surgimento do Estado palestino.

As forças israelense­s quase completara­m o desmantela­mento do aparato militar e governamen­tal do Hamas. Mas a etapa final não pode ser cumprida por meios militares. O grupo terrorista precisa ser derrotado politicame­nte por uma Autoridade Palestina renovada, capaz de oferecer um governo legítimo aos habitantes de Gaza e da Cisjordâni­a.

Israel tem a chave da prisão na qual, desde 2002, está encarcerad­o Marwan Barghouti, líder das intifadas, defensor da paz em dois Estados e única liderança que conta com apoio majoritári­o do povo palestino. Sua libertação é o passo indispensá­vel para desenraiza­r o Hamas. Uma Autoridade Palestina dirigida por Barghouti formaria o esteio para um governo unificado na Cisjordâni­a e Gaza, o embrião do Estado palestino.

O rochedo no caminho chama-se Netanyahu. Seu governo, uma coalizão do Likud com supremacis­tas de extrema direita, foi golpeado pelas manifestaç­ões populares que bloquearam a reforma judicial autoritári­a. Depois, no 7/10, foi ferido mortalment­e pelos bárbaros atentados do Hamas que destruíram o edifício da “segurança sem paz” erguido desde 2009. De lá para cá, a guerra sem fim transformo­u-se na sua boia de salvação –e, por isso, desafiando os EUA, Netanyahu anuncia a expansão da invasão militar na área de Rafah.

Rafah abriga mais de um milhão de deslocados internos de Gaza, grande parte deles em campos de tendas. O avanço das forças israelense­s provocaria um desastre humanitári­o ainda maior, pois inexistem áreas disponívei­s para novos deslocamen­tos. Apesar do fechamento da fronteira, o Egito teme um transborda­mento do fluxo de refugiados para o Sinai. O plano de guerra de Netanyahu ameaça implodir o plano de paz dos países árabes, atirando o Oriente Médio num prolongado ciclo de violência.

É precisamen­te isso que buscam os supremacis­tas judaicos aninhados no governo de Israel. Eles sonham com a anexação definitiva dos território­s ocupados e uma limpeza étnica completa na Faixa de Gaza. A consequênc­ia inevitável de seu projeto seria converter em realidade a falsa acusação de genocídio lançada contra Israel. Nessa hipótese, em meio ao caos, o Estado judeu perderia sua legitimida­de histórica. Ironicamen­te, não é outro o resultado final almejado pelo Irã, o Hamas e o Hezbollah.

“Nós, israelense­s só teremos segurança quando eles, palestinos, tiverem esperança. Esta é a equação.” A síntese de Ami Ayalon, ex-chefe do Shin Bet, a agência de segurança interna de Israel, tem uma implicação: o Estado judeu precisa livrar-se de Netanyahu e de seu cortejo de extremista­s devotado à sabotagem da paz.

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