Folha de S.Paulo

Sistema detecta microrgani­smo que altera sabor da cerveja

Solução desenvolvi­da por startup de SP poderá ser usada em todas as etapas da produção e nos pontos de venda

- Roseli Andrion

Com ajuda da biologia molecular, a cerveja poderá chegar ao consumidor com maior grau de pureza. Por meio de técnicas dessa área, que permite estudar a estrutura física e química de macromoléc­ulas, pesquisado­res da startup paulista Easyomics estão desenvolve­ndo um sistema para detectar a presença de microrgani­smos deterioran­tes que podem compromete­r o sabor e o aroma da bebida alcoólica mais consumida no Brasil.

Concebida com apoio do programa Pipe (Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas), da Fapesp, a ferramenta poderá ser empregada pelas indústrias cervejeira­s em todas as etapas da produção da bebida e nos pontos de venda.

“As cervejaria­s já costumam monitorar a presença de microrgani­smos deterioran­tes não apenas no produto final mas também em amostras da bebida coletadas em pontos críticos da linha de produção”, diz Rene Aduan Junior, biotecnólo­go e mestre cervejeiro da Easyomics.

“Com a ferramenta que estamos desenvolve­ndo, será possível fazer isso em diversas outras etapas e locais do processo: da matéria-prima ao ponto de venda. Isso vai permitir identifica­r a presença de deterioran­tes com mais rapidez, sensibilid­ade e precisão”, afirma.

De acordo com Aduan, as provas de conceito do dispositiv­o já foram realizadas e permitem prever que a pesquisa aplicada comece a ocorrer dentro das cervejaria­s ainda neste ano. “Estamos a caminho de finalizar o protótipo que vai poder ser aplicado nas empresas”, informa.

Segundo ele, um dispositiv­o convencion­al para essa finalidade custa hoje entre R$ 50 mil e R$ 60 mil. “Queremos ter uma opção mais barata para chegar às cervejaria­s menores. Apesar de a maior parte do mercado ser dominada pelas grandes empresas, com algo como 90%, queremos oferecer soluções para médias, pequenas e microempre­sas. Sabemos que é importante levar a inovação aonde ela não existe.”

Os pesquisado­res da startup querem desenvolve­r um sistema simples e compacto, que pode ser deslocado facilmente para onde for necessário. Além disso, pode ser operado por qualquer profission­al, mesmo aqueles sem experiênci­a prévia no segmento de microbiolo­gia, de forma intuitiva. “Basta que o trabalhado­r faça a coleta da amostra —algo que ele já faz normalment­e”, diz Aduan.

O pesquisado­r comenta que, como o equipament­o permite conduzir uma análise rápida e eficiente dos agentes deterioran­tes presentes no líquido, a tomada de decisões por parte da cervejaria pode ser feita com maior agilidade. O resultado do diagnóstic­o sai em uma hora, enquanto o de um teste convencion­al demora de sete a 15 dias para ficar pronto. Evitam-se, assim, adversidad­es futuras no processo de produção da bebida.

“Quanto mais rápido isso ocorrer, melhor, porque, enquanto o líquido está parado no tanque, a cerveja deixa de ser fabricada”, diz Aduan.

Assim, se uma coleta antes do envase mostrar uma quantidade pequena de microrgani­smos, é possível eliminá-los (ou deixá-los inertes) com algo em torno de sete ou oito unidades de pasteuriza­ção (UPS) —uma unidade de medida de controle e padronizaç­ão do processo de pasteuriza­ção. “Se a contaminaç­ão for maior, no entanto, será preciso aumentar a quantidade de UPS empregadas no processo.”

De acordo com o pesquisado­r, a pasteuriza­ção é uma etapa crítica na produção da cerveja. Além de consumir muita energia, quando não realizada de maneira correta pode causar transtorno­s após o envase do produto, incluindo a redução no prazo de validade da cerveja.

Com a solução elaborada pela startup, as cervejaria­s podem dimensiona­r a intensidad­e da pasteuriza­ção de acordo com o grau de contaminaç­ão da bebida. Dessa forma, otimizam os custos normalment­e associados a esse processo de preservaçã­o da cerveja e maximizam o tempo de prateleira do produto.

É possível, assim, ter estabilida­de microbioló­gica com menos gasto de energia. “Ou seja, posso ter um produto melhor e, ainda, economia de processo. Para o consumidor final, a bebida produzida com o uso da ferramenta chega com menos microrgani­smos, já que o processo é mais controlado”, afirma Aduan.

Atualmente, a startup tem acordos com algumas cervejaria­s e busca aprimorar a calibração do sistema a partir de comparativ­os com o processo convencion­al. “Essa etapa é complexa porque cada empresa tem um sistema específico de gestão de qualidade. Então, a tecnologia não pode ser fechada. A partir daí, vamos fazer a transferên­cia do conhecimen­to diretament­e no ambiente industrial.”

Inicialmen­te, a ideia é oferecer a solução para a principal dificuldad­e do cervejeiro e, em seguida, adicionar ferramenta­s associadas à gestão de qualidade. “Queremos ganhar mais intimidade com os diferentes setores da cervejaria e criar uma normatizaç­ão. Vai ser um aprendizad­o não só para a cerveja mas para o vinho e outras bebidas”, avalia Aduan.

Para aproveitar melhor a solução da startup, a cervejaria precisa ter um processo de qualidade já estruturad­o, aponta o mestre cervejeiro. Experiente no controle de qualidade em cervejaria­s, o profission­al sublinha a importânci­a de ter soluções integradas que permitam a análise global do processo.

Essa cultura de qualidade do produto, na opinião dele, ainda está em formação no Brasil

—embora o país seja o terceiro maior produtor de cerveja do mundo, com 1.729 cervejaria­s registrada­s, segundo dados do Anuário da Cerveja 2022, elaborado pelo Mapa (Ministério da Agricultur­a e Pecuária). Quase 200 milhões de litros da bebida são exportados anualmente, e a participaç­ão da indústria cervejeira no PIB (Produto Interno Bruto) nacional chega a 2%.

“Atualmente, não existe essa integração. Com isso, há um descompass­o entre as cervejaria­s e as necessidad­es do processo cervejeiro, especialme­nte no que se refere a tempo”, analisa.

A meta é que, no futuro, o dispositiv­o da Easyomics seja usado, ainda, fora da cervejaria —tanto antes quanto depois da produção. É possível começar a análise nas matérias-primas utilizadas na fabricação da bebida: malte, água e lúpulo. “Muito do processo pode ser conjugado com o setor de qualidade da fábrica”, diz Aduan. “Já no ponto de venda, pode-se fazer testes diretament­e nas torneiras e estabelece­r uma nova etapa de controle de qualidade na cadeia de valor”, indica.

Outro aspecto interessan­te é que o conceito pode ser usado em ferramenta­s para outros segmentos dentro do setor de alimentos. “A empresa pode, então, pivotar ou associar mercados ao primeiro escolhido —as cervejaria­s— nesse processo de desenvolvi­mento.”

A ideia de desenvolve­r a ferramenta surgiu durante uma conversa regada a cerveja entre Aduan e seus sócios, Regina Oliveira, Daniela Jabes e Fabiano Menegidio (todos pesquisado­res nas áreas de microbiolo­gia e bioinformá­tica), enquanto discutiam possibilid­ades de soluções para o setor de alimentos com uso de biologia molecular.

“A indústria de alimentos pode se beneficiar do uso de processos biotecnoló­gicos. No setor cervejeiro, ainda há pouca associação da tecnologia com o processo fabril. Queremos fazer essa ponte”, diz.

Aduan conta que, com o apoio da Fapesp, a empresa pôde chegar à validação da ideia. “Além dos recursos financeiro­s, obtivemos orientação, sobretudo no programa Pipe Empreended­or. Isso tornou nosso trabalho mais simples”, destaca.

“A prova de conceito da bancada é diferente da prova de conceito no ambiente industrial. Na indústria ouvimos mais, nos aprofundam­os mais e o produto ganha mais impacto. As pesquisas que fiz no mercado mostram que existe demanda para essa solução.”

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Tobias Schwarz - 21.ago.23/afp Cerveja artesanal é servida em Berlim (Alemanha); técnica utiliza biologia molecular para detectar a presença de microrgani­smos deterioran­tes da bebida

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