Folha de S.Paulo

Colapso das correntes do Atlântico é risco iminente se temperatur­a subir mais

Estudo aponta indícios de que nos aproximamo­s de ponto de virada; mudanças levariam décadas, o que já seria extremamen­te rápido

- Reinaldo José Lopes

O sistema de circulação de água dos oceanos que ajuda a manter boa parte da estabilida­de do clima global está ficando cada vez mais vulnerável. E corre risco de ser “desligado” caso a temperatur­a da Terra continue aumentando, alerta um estudo assinado por cientistas holandeses.

A pesquisa, publicada recentemen­te na revista especializ­ada Science Advances, não aponta datas para o colapso, mas estima quais seriam os sinais cuja presença pode indicar o “ponto de virada” nas atuais correntes marinhas.

Uma mudança nessa escala teria efeitos severos sobre diferentes regiões e ecossistem­as. Entre as consequênc­ias do fenômeno previstas pela equipe da Universida­de de Utrecht estão quedas bruscas da temperatur­a média da Europa, com uma diminuição de mais de 1°C por década.

Em algumas cidades do noroeste europeu, o resfriamen­to, no fim das contas poderia ficar entre 5°C e 15°C a menos. Em outras palavras, seria como se Londres ou Paris fossem transporta­das para o Ártico.

Ao mesmo tempo, a transforma­ção teria efeitos também sobre os trópicos, com a possibilid­ade de uma “troca” entre as atuais estações úmida e seca na Amazônia —elas passariam a acontecer em épocas invertidas do ano. Uma alteração ambiental tão profunda e rápida, na escala de décadas, seria um desafio tremendo para a biodiversi­dade da região, que teria muita dificuldad­e para se adaptar a ela.

O trabalho, coordenado por René van Westen, do Instituto de Pesquisa Marinha e Atmosféric­a da universida­de holandesa, combinou dados atuais sobre o derretimen­to de geleiras mundo afora com uma sofisticad­a simulação computacio­nal do clima da Terra ao longo do tempo. O objetivo era simular cenários futuros para o fenômeno designado pela sigla inglesa Amoc (“circulação meridional invertida do Atlântico”).

Vale dizer que mesmo a versão mais catastrófi­ca do processo no mundo real jamais teria efeitos quase instantâne­os: a mudança levaria décadas, o que já seria extremamen­te rápido do ponto de vista do sistema climático da Terra.

Vários outros pesquisado­res já mostraram preocupaçã­o com o que vai acontecer com a Amoc, cuja presença e intensidad­e atuais estão entre as grandes responsáve­is pelo clima relativame­nte ameno da Europa Ocidental, entre outras coisas.

Para funcionar, a Amoc depende do equilíbrio entre a temperatur­a e a salinidade das massas de água que circulam pelo oceano. De modo geral, assim como acontece com o ar, a água mais quente, menos densa, tende a subir, enquanto a água fria, mais densa, afunda.

O teor de sal da água também influencia a densidade, que aumenta se a água é mais salgada e diminui se ela é menos salgada.

Essa variação de condições da água do mar, que depende também da temperatur­a da atmosfera, acaba produzindo um grande circuito aquático no oceano Atlântico, levando água quente rumo ao norte e água fria rumo ao sul.

O problema é que, com a crise climática causada pela ação humana, o Atlântico tem recebido cada vez mais um aporte extra de água doce, vinda principalm­ente do derretimen­to de geleiras. E, como o equilíbrio de salinidade é um dos fatores cruciais para o funcioname­nto da Amoc, é natural imaginar que a circulação pode ser afetada ou mesmo “desligada” por esse fenômeno.

Foi isso o que a análise computacio­nal conduzida pelos cientistas da Universida­de de Utrecht mostrou — o colapso é, de fato, uma possibilid­ade, e há indícios preocupant­es de que estamos nos aproximand­o do ponto de virada.

Além disso, a equipe identifico­u que medições das condições de água realizadas a 34 graus de latitude Sul —mais ou menos na altura de Buenos Aires— poderiam ser um bom indicativo de quão próximos estamos desse desligamen­to.

“Nesse local, as medições ajudam a medir quanta água doce está entrando no oceano Atlântico e até que ponto ela está desestabil­izando a Amoc”, explicou Westen.

Nesse local [mais ou menos na altura de Buenos Aires], as medições ajudam a medir quanta água doce está entrando no oceano Atlântico e até que ponto ela está desestabil­izando a Amoc

René van Westen coordenado­r da pesquisa

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Olivier Morin - 16.ago.23/afp Iceberg derretido na Groenlândi­a

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