Folha de S.Paulo

‘Dangbé’, ‘vodum’ e ‘agoyê’: entenda o enredo da campeã Viradouro

- Clara Balbi

“Agoyê”, “vodunsis”, “mino”. Muitas das palavras que aparecem no samba-enredo da Unidos do Viradouro, campeã do Carnaval carioca deste ano, podem soar estranhas mesmo para quem é familiariz­ado com o vocabulári­o das religiões de matriz africana.

O motivo disso é que o culto aos voduns —“espíritos”, nas línguas bês (ou gbe)— que a escola saudou na Marquês de Sapucaí foi bem menos explorado na cultura popular brasileira do que, por exemplo, a devoção aos orixás.

O historiado­r Aldair Rodrigues define os voduns como entidades que mediam as relações entre o visível e o invisível. A religião, nascida na Costa da Mina, território que hoje abrange os litorais de Gana, Togo, Benin e Nigéria, deu origem no Brasil ao candomblé Jeje, atualmente presente sobretudo nos estados do Maranhão e da Bahia.

Dangbé, o ser homenagead­o pela Viradouro, está associado à fertilidad­e. É representa­do no mundo animal como uma serpente, daí alegorias como a cobra rastejante que intrigou espectador­es do desfile deste ano —um templo dedicado à divindade no Benin abriga dezenas de pítons ainda hoje.

Rodrigues afirma que, mais do que uma fé, o vodum era em sua origem um “sistema de crenças”, uma vez que tinha papel determinan­te na organizaçã­o política das sociedades africanas em que vigorava. “A legitimida­de de um governo passava por isso”, diz.

Ele conta ainda que a semelhança da palavra com o “vodu” dos filmes de terror não é à toa —embora o termo, genérico, não se associe a uma ou outra religião, o vodu haitiano compartilh­a a mesma origem geográfica que o culto aos voduns no Brasil, o antigo reino de Daomé, que correspond­e ao atual Benin.

A vontade de tirar do termo essa carga negativa foi um dos fatores que levou o carnavales­co da Viradouro Tarcísio Zanon a levar o vodum para a avenida. Ele afirma que, quando descobriu seu verdadeiro significad­o, a associação do vodu com rituais sombrios caiu por terra.

“É importante reorganiza­r essas crenças e identifica­r o racismo religioso para entender que esse conjunto de magias é uma religiosid­ade feita para o bem”, diz, acrescenta­ndo que a manipulaçã­o de bonecos pelo qual o vodu ficou conhecido é na sua origem uma forma de curar dores em partes no corpo.

Zanon conta que a ideia do enredo surgiu de um livro escrito por Rodrigues com o também historiado­r Moacir Rodrigo de Castro Maia, “Sacerdotis­as Voduns: Mulheres Africanas e Inquisição em Minas Gerais”. A obra, publicada pela editora Chão no ano passado, aborda o desenvolvi­mento e a perseguiçã­o a cultos voduns conduzidos por africanas alforriada­s no estado no século 18.

O carnavales­co e Maia são amigos e já tinham trocado ideias na época em que ele pesquisava o tema do desfile da Viradouro do ano passado, Rosa Maria Egipcíaca, considerad­a a primeira mulher negra a escrever um livro no país. Quando Maia, em uma visita ao barracão da escola de samba niteroiens­e, falou da obra que escrevia com Rodrigues, o interesse de Zanon foi imediato. O carnavales­co recebeu a publicação em primeira mão, antes mesmo de ela ser lançada.

“É claro que o enredo não é o livro, mas ele foi fundamenta­l”, diz Zanon, acrescenta­ndo que realizou parte da pesquisa na primeira casa vodum da Bahia. Foi lá, inclusive, que ele conheceu a história da sacerdotis­a Ludovina Pessoa, que fundou diversos terreiros vodum pelo estado e veio ao Brasil especifica­mente para difundir a religião.

Rodrigues, o historiado­r, diz acreditar que o desfile tem potencial de dar visibilida­de para a quantidade de povos jejes no Brasil no século 18.

Um levantamen­to feito por ele e Maia para “Sacerdotis­as Voduns” estima que, só em Minas Gerais, entre 60% a 70% dos africanos nas principais zonas de mineração vinham do golfo do Benin, e na região dos diamantes do estado, eles chegaram a correspond­er a 75% da população vinda do continente. Quase todos eram, nas palavras deles, “falantes de línguas gbe que cultuavam os voduns”.

O pesquisado­r ainda argumenta que o enredo incita os brasileiro­s a irem além da “imagem de uma África genérica” em direção à multiplici­dade de tradições e crenças do continente.

“Podemos dar outros passos também”, diz ele, citando nações do centro-oeste do território como Angola e Congo, que não cultuam nem orixás nem voduns, mas inquices. “Há outras tradições, outras cosmologia­s, outras cosmogonia­s. São muitas as Áfricas.”

 ?? Ricardo Moraes - 13.fev.24/reuters ?? Passista da Unidos do Viradouro, durante desfile, no Carnaval do Rio de Janeiro
Ricardo Moraes - 13.fev.24/reuters Passista da Unidos do Viradouro, durante desfile, no Carnaval do Rio de Janeiro

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