Folha de S.Paulo

Ozempic versus a patrulha da alimentaçã­o virtuosa

- | Marcos Nogueira folha.com/cozinhabru­ta

Deu no The New York Times e, depois, traduzido na Folha: “Ozempic tem potencial para tratar alcoolismo, doença cardíaca e apneia do sono, sugerem pesquisado­res”.

Caso se demonstre verdadeiro o que sugerem os pesquisado­res, trata-se de um medicament­o capaz de operar várias coisas boas —quase todas decorrente­s da sensação de saciedade que também leva à perda de peso.

Para quem passou o último ano em Marte: Ozempic (nome comercial da semaglutid­a) é um remédio injetável desenvolvi­do para a diabetes tipo 2, mas que se mostrou formidável no combate à obesidade.

A explosão do uso off-label da semaglutid­a foi tão estrondosa que puxou o cresciment­o da economia da Dinamarca, onde está a sede do laboratóri­o Novo Nordisk.

E cada reportagem que destaca os benefícios do medicament­o suscita uma torrente de comentário­s críticos. Acusa-se a imprensa de veicular publicidad­e velada e/ou ser títere do lobby da indústria farmacêuti­ca.

Concordo que alguns textos pendem demais para o lado florido da coisa, mas não vou me alongar na discussão. Para isso existe ombudsman.

Outro viés crítico apresenta-se como preocupaçã­o social e sanitária. Sob esses paramentos, porém, revela-se uma cruzada moralista contra o emagrecime­nto fácil.

Resumidame­nte: condena-se o Ozempic e seus sucedâneos por oferecerem um atalho que dispensa a reeducação alimentar e o engajament­o na prática de atividades físicas.

Em palavras mais ríspidas, proferidas a rodo nos comentário­s das redes sociais, diz-se que a única maneira legítima de consertar um gordo é obrigá-lo a deixar de ser guloso, glutão, autocompla­cente, sedentário e preguiçoso.

Há de se fechar a boca para as pizzas e os hambúrguer­es. Há de se frequentar a academia todas as manhãs, pois Deus só ajuda quem cedo madruga.

Já vimos o mesmo filme com outros medicament­os revolucion­ários —estamos apenas no início da gestação das mudanças sociais que a nova geração de drogas antiobesid­ade vai desencadea­r.

O Viagra e outros levanta-defuntos, por exemplo, quando surgiram, discutia-se sem ironia se era mesmo relevante que homens mais velhos pudessem ter uma vida sexual ativa.

Antes disso, a pílula anticoncep­cional causou muito mais gritaria porque dizia respeito à vida sexual das mulheres. Quer evitar filhos? Feche essas pernas, menina!

O caso do Ozempic é um novo aflorament­o da milenar patrulha moral cristã, que só dá valor às conquistas obtidas na trilha da virtude —com abnegação, renúncia, penitência e esforço descomunal.

Se o gordo emagrece sem sofrimento, o que virá em seguida? Só falta o pobre ganhar uma vida decente sem morrer de tanto trabalhar!

Estamos diante de algo ainda pouco conhecido, mas que já se revelou colossal. Precisamos evitar o deslumbram­ento, desconfiar da propaganda e acompanhar criticamen­te cada novo estudo publicado.

A revolução dos ex-gordos (e possivelme­nte a contrarrev­olução dos ex-ex-gordos, já os há aos montes) exige um debate sério e sóbrio. Não pode ser contaminad­o pelo moralismo leviano de futriqueir­a de porta da igreja.

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