Joca Reiners Terron usa minotauros para denunciar abatedouros
Onde pastam os Minotauros ★★★★ ★ Autor: Joca Reiners Terron. Ed.: Todavia. R$ 69,90 (184 págs.); R$ 49,90 (ebook)
No mito grego, o minotauro é um ser parte bovino, parte humano, que guarda as consequências da recusa do rei Minos em sacrificar um belo touro a Poseidon —o deus faz a rainha Pasífae se perder de amores pelo bicho, seduzir a criatura e conceber o monstro.
Minos manda então construir um enorme labirinto para isolar do mundo o minotauro, que se alimenta de jovens enviados ali para serem abatidos, promovendo uma troca hiperbólica de sacrifícios.
Em “Onde Pastam os Minotauros”, Joca Reiners Terron transporta o mito para o universo igualmente brutal de um abatedouro halal, que produz carne para o Oriente Médio no interior do estado de Mato Grosso contemporâneo.
O labirinto agora é o curral circular, e o sacrifício, sob a perspectiva das espécies, é democrático. Matam os bois do lado de dentro, enquanto morre de fome, fora dali, o povo miserável. No entanto, como poderemos ler mais adiante no texto, os homens “perderam qualquer sentido de compreensão do sagrado”.
Nessa queda, se opera um deslocamento na relação entre o humano e o bovino. Não mais posta como maldição, é da interação entre eles que pode surgir alguma redenção.
Terron constrói essa ideia por meio do Cão, um dos funcionários do abatedouro. Criança, o personagem vive uma proximidade amorosa com o rebanho do pai adotivo; adulto, ele experimenta certa conexão psíquica com os bois que conduz para a morte. É o manejador ideal —levando os animais com tranquilidade, ele consegue garantir a qualidade de sua carne.
O Cão se dá conta, com horror, de que seu amor pelos touros é usado para gerar lucro à empresa e deixa seu posto, passando ao tráfico de drogas, que o leva à prisão. Quando o conhecemos no romance, está de volta ao abatedouro, ao lado da namorada Lucy e do irmão de criação, o Crente, assim como Ahmed, o degolador palestino responsável pelo abate religioso —e cruel— dos animais.
Todos eles têm motivos para querer estar longe dali, bem como para se vingar dos homens que só encaram a violência como um negócio. Eles então elaboram um plano, cujo desenrolar podemos acompanhar num bem construído ritmo de thriller.
Entremeadas aos capítulos ágeis, encontramos reflexões que vão do político ao metafísico. Enquanto os revoltosos se questionam sobre a real possibilidade de saírem das espirais em que estão metidos, os sócios da empresa se preparam para pôr em prática uma demissão em massa.
O esmero nas minúcias da realidade é excessivo —do pastor que constrange os fiéis a não deixar a igreja na pandemia ao médico cubano que não deixou o trabalho, há botões demais sendo apertados.
Mas isso não compromete o livro, no qual Terron mostra que a denúncia da desigualdade social brasileira é mais vigorosa quando explora imaginativamente a ambiguidade moral humana, a fabulação lírica e a sofisticação formal.
O autor é feliz quando mais se arrisca. É o caso da trilha aberta entre a alucinação e a fantasia, na qual nos deparamos com a imagem de meninos-touros povoando o centro do curral, como uma síntese da sina local de gerar os filhos que produzirão a carne interdita a eles próprios, em uma espécie de curto-circuito da dinâmica dos sacrifícios.
Quem intui esses minotauros é o Cão, que também ouve os pensamentos dos bois cativos. Estes são trazidos à narrativa por meio de um spinoff do poema de Drummond, “Um Boi Vê os Homens”, que Terron expõe, com sucesso, em cinco de 44 capítulos.
Sua tristeza, pensam os bichos sobre nós, “não é uma tristeza como a nossa, de quem não tem voz, mas sim a tristeza de quem tem voz, mas não pode exprimir nada”.
Transportando a voz aos bois, libertos do cinismo tão humano, somos confrontados com uma consciência que, diante da confluência entre tristeza e crueldade, tem como única reação a perplexidade.
“Ninguém ouviu essa história. A história do minotauro do ponto de vista dos bois”, escreve Terron na última das passagens bovinas. Continuamos sem ouvir, afinal isso tudo é ficção. Mas o mero exercício de se sacrificar a fim de imaginar o outro adiciona uma camada de santidade ao Cão e de decência a nós.