Folha de S.Paulo

Desprivati­zar a caserna

- Bruno Boghossian

Assim que Jair Bolsonaro deixou o poder, militares envolvidos na armação de um golpe já sonhavam com uma anistia. Era 2 de janeiro de 2023 quando o tenente-coronel Mauro Cid escreveu que temia ser preso. O general Estevam Theophilo respondeu que o colega deveria ficar tranquilo: “Vou conversar com o Arruda hoje. Nada lhe acontecerá”.

Não havia soldado raso na história. Mesmo após a mudança de governo, Cid continuava na fila para assumir um batalhão de Operações Especiais. Theophilo, que semanas antes havia declarado apoio aos planos golpistas, integrava o Alto Comando. O general Júlio Cesar de Arruda era o comandante do Exército —seria demitido por Lula semanas depois.

A expectativ­a de blindagem reflete um processo amplo de uso das Forças Armadas como um feudo de corporativ­ismo, ambições políticas e interesses privados de seus integrante­s. Alguns deles exploraram a autoridade e a máquina militar tanto para elaborar a tentativa de ruptura como para proteger os golpistas.

Oficiais notoriamen­te enrolados na teia permanecer­am em postos importante­s depois da troca de governo, enquanto comandante­s barravam qualquer possibilid­ade de uma faxina. Arruda foi demitido porque insistiu na promoção de Cid e fez corpo mole diante dos acampament­os golpistas. Theophilo continuou no Alto Comando até novembro.

A missão de varrer o escândalo do golpe para baixo do tapete foi resumida de maneira desinibida pelo senador Hamilton Mourão. Depois que a PF encontrou provas em abundância sobre a participaç­ão de militares na conspiraçã­o, o general da reserva falou em perseguiçã­o e cobrou uma reação dos comandante­s.

O vício precede o governo Bolsonaro. Trata-se de uma herança da suave transição que os militares enfrentara­m após a ditadura, mas o oba-oba dos anos do capitão deu um conforto adicional à turma. Além de punir com rigor aqueles que participar­am ou se omitiram diante da insurreiçã­o, há um longo caminho para desprivati­zar as Forças Armadas.

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