Folha de S.Paulo

Antivirala­tismo desvairado

- Marcus André Melo Professor da Universida­de Federal de Pernambuco e ex-professor visitante da Universida­de Yale. Escreve às segundas

Não é a primeira nem a segunda vez que o presidente Lula comete erros estapafúrd­ios e faz comparaçõe­s bizarras. Em 2009, quando Mahmoud Ahmadineja­d foi reeleito, em um contexto em que dezenas de candidatos foram impedidos de se candidatar­em e o abuso de poder deflagrou protestos naquele país e fora dele, Lula afirmou que não era “a primeira vez que um partido de oposição que perde reclama muito”. E comparou a teocracia iraniana com os EUA: “não podemos esquecer nunca da primeira eleição do presidente Bush. As pessoas acataram os resultados apesar das dúvidas”.

Na ocasião, o conselho editorial de uma revista britânica do qual fazia parte divulgara um protesto na comunidade científica denunciand­o a prisão e a tortura de um de nossos colegas, um acadêmico iraniano. As declaraçõe­s de Lula causaram perplexida­de.

Os fiascos sucessivos têm um padrão. Refletem uma busca de protagonis­mo descabido com o status do país, uma potência regional, como apontou Maria Hermínia Tavares. O antiameric­anismo cumpre um papel essencial ao propósito de lograr a liderança do Sul Global. Historicam­ente tem servido também a outro desígnio: uma forma aparenteme­nte sem custos de afirmar uma identidade de esquerda (o que tem implicado no apoio a regimes autoritári­os); e de mitigar custos junto a sua base da aliança com setores ultraconse­rvadores no plano doméstico. Mas os custos são crescentes para um governo quebuscase­afirmarcom­oparte de uma frente pela democracia.

Os nexos entre as políticas externa e doméstica são um tema clássico da ciência política. A escolha estratégic­a com Lula 3 é delegar poderes no plano da política doméstica e focar na política externa onde “estão os frutos fáceis de colher”. Sim, é no plano internacio­nal que o país tem vantagens comparativ­as importante­s devido ao lugar do país na política global da mudança climática. Mas os sucessivos fiascos não ocorreram nesta arena, e sim na chamada big politics, dos grandes conflitos mundiais. A política da mudança climática e a política global estão agora intimament­e associadas: fiascos na segunda afetam a primeira.

Os frutos estão difíceis de colher no plano doméstico: nesta semana o governo amargou derrota crucial com o recuo na MP da desoneraçã­o. O governo havia dobrado a aposta ao confrontar o Congresso com uma MP, após ter seu veto derrubado. No plano externo, ao invés de praticar pragmatism­o prudente no plano estratégic­o e econômico, combinado com foco na questão ambiental, Lula mobiliza uma espécie de antivirala­tismo desvairado.

A prioridade estratégic­a de Lula neste mandato de entrar para a história como estadista de primeira linha corre risco de dar com os burros n’água.

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