Folha de S.Paulo

Dormiu bem, general?

Irritometr­ia militar em off é o pico do servilismo jornalísti­co

- Conrado Hübner Mendes Professor de direito constituci­onal da USP, é doutor em direito e ciência política e membro do Observatór­io Pesquisa, Ciência e Liberdade - SBPC

No currículo oculto da formação em jornalismo existe uma disciplina chamada “Servilismo ao poder político e econômico”. Ensina a prestar serviços privados a quem manda, e a se afastar da produção de qualquer informação útil ao interesse público ou bem comum. Dentro dessa disciplina, há um tópico ao qual o jornalismo brasileiro se dedica com muito gosto e engenho: a irritometr­ia militar. “Forças Armadas se irritam com revelações da PF sobre participaç­ão de militares na tentativa de golpe”; “A irritação da cúpula militar com a investigaç­ão da PF sobre o golpe”; “Cresce a irritação das Forças Armadas contra atuação da Polícia Federal”. “Militares se irritam com prisão de Cid”; “Entenda o motivo da irritação das Forças Armadas com o caso das joias de Jair Bolsonaro”; “Nova crise provocada por Olavo de Carvalho escancara irritação de militares”. “A irritação das Forças Armadas com o decano do Supremo” (o decano era Celso de Mello, que ousou avisar a militares que, se não fossem depor, seriam levados, como qualquer cidadão, “debaixo de vara”); “A irritação dos militares com Alexandre de Moraes” (o ministro representa­ria uma “senha da indignação” entre militares). É um jornalismo orgulhoso do privilégio dessa fonte tão especial, o general. Por isso não se reconhece como jornalismo de fofoca. Na tipologia das fofocas, existe a fofoca BBB (relato de fatos curiosos sobre atores que só se tornam conhecidos em razão da fofoca); e existe a fofoca sobre a vida privada de autoridade­s ou celebridad­es (onde a notoriedad­e dos atores precede a fofoca). Na irritometr­ia militar, a fofoca é plantada pelas próprias autoridade­s. Em geral, um aviso anônimo em off; com frequência, simulando posição refletida e deliberada de uma coletivida­de, uma instituiçã­o, não a opinião de um ou dois indivíduos. Se a irritabili­dade fosse apenas uma categoria de fofoca política, não teria maiores efeitos. Mas, nesse jornalismo, ela se alçou a uma categoria de análise política. Um bom irritometr­ista se presta a cumprir, portanto, outras funções: mandar mensagens, ameaças, ofertas de barganha. Ninguém se torna irritometr­ista por pura preguiça, carência, falta de assunto ou vocação servil. Não é serviço gratuito. Há contrapart­idas desejadas. Pode ser promessa de influência, prestígio de exclusivid­ade, entrada em festas, lista de contatos, cliques. Pode ser exigência do jornal ou do editor. Pode ser uma condição para manter o emprego. Melhor que jornalismo declaratór­io de opiniões é o jornalismo declaratór­io do estado de espírito. Melhor que jornalismo declaratór­io do estado de espírito é o do estado de espírito em off. E melhor que o indivíduo irritado em off é a instituiçã­o irritada em off. Para que as Forças Armadas se irritem, basta qualquer enunciação pública dos crimes que cometeram no passado e no presente. Basta qualquer demonstraç­ão de sua associação a uma família de delinquênc­ia política serial que assumiu a Presidênci­a e desenhou plano de golpe junto com eles. Basta o aparente risco de sanção, pois sanção, de fato, nunca sofreram. No máximo, a sanção premial: ameaçam o governo e ganham benefícios orçamentár­ios, remunerató­rios e previdenci­ários (também para as filhas). A obsessão mórbida com a irritação de militares tem uma ousadia epistêmica. O irritometr­ista se julga capaz não só de identifica­r a irritação, mas de medi-la. É capaz de perceber quando a irritação se mantém estável, quando cresceu ou regrediu. Uma ousadia preguiçosa, pois sequer se preocupa em reportar outro estado de espírito. Queríamos também saber quando militares estão felizes, quando se regozijam. Se na tortura ou na sinecura. Tem também uma dimensão moral. Não é qualquer cidadão ou instituiçã­o que goza do luxo desse cuidado jornalísti­co. Importante saber com qual estado de espírito o jornalismo se preocupa, e qual ignora. Quando Lula afirmou não querer “remoer o passado”, por que os irritometr­istas não foram lá perguntar o que sentiam os familiares de vítimas da brutalidad­e militar? Seu irritômetr­o só quer saber de vestir farda?

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil