Folha de S.Paulo

Menino cruza floresta perigosa em busca de uma vida melhor

Ao lado da família na selva de Darién, Joseph Mathias sente saudade da escola

- Mayara Paixão e Lalo de Almeida Comarcar Emberá-wounaan (panamá)

Joseph Mathias tem 13 anos e está com uma saudade danada da escola. Era para esse “fã de tudo que tem a ver com planetas” estar cursando o 8º ano em Manaus, no Amazonas, onde morava com a família havia dez anos. Mas algumas responsabi­lidades que são mais de adultos do que de crianças mudaram a sua vida.

Quando conversou com a Folhinha, no começo de fevereiro, ele tinha acabado de cruzar a floresta conhecida como “a selva de Darién” em uma viagem difícil, que levou cinco dias, de mãos dadas com seu pai, sua mãe e suas duas irmãs menores (Rebeca, de 4 anos, que aparece com ele na foto acima, e Deborah, de 1 ano e 9 meses).

Joseph viu um montão de coisas. Algumas delas vão ficar em um lugar bonito da memória, mas outras, nem tanto.

“Eu me lembro de ver jacaré, tartaruga e ornitorrin­co”, conta ele. “Ornitorrin­co?!”, perguntou a reportagem da Folhinha surpresa, já que esse animal não habita essas bandas da América Latina.

“É, não sei bem se era, mas sei que parecia bastante...”, respondeu Joseph.

E então vem o lado nada bom da floresta, onde muitas outras crianças e adultos como o Joseph e sua família ficam desprotegi­das e expostas a uma vegetação densa e difícil e a rios perigosos.

“Vi também uma pessoa morta, mas sei que tinham outras, porque senti o cheiro. E foi muito difícil tudo. A água dos rios era muito funda, a correnteza, muito forte. A Receba, minha irmã, não conseguia cruzar, e eu e o meu pai tínhamos que ajudá-la.”

Imaginamos que você esteja se perguntand­o qual foi o motivo que fez com que o David, que é pai do Joseph, levasse toda a família para essa viagem tão difícil. O motivo principal, como eles nos contou, era tentar uma vida melhor para todos eles.

Vamos entender os pedaços dessa história que envolve cinco países, a vontade de cruzar metade de um continente e a floresta de Darién.

Joseph e sua família viviam em Manaus, cidade brasileira no coração da floresta amazônica, seu pai e sua mãe nasceram em outro país: o Haiti. É uma pequenina nação localizada em uma ilha no mar do Caribe onde a vida se tornou muito difícil.

Em 2010 o Haiti sofreu um terremoto que deixou mais de 200 mil mortos e passou a ter cidades muito violentas. De tanto que conversa com o pai, até o Joseph, que nunca foi ao Haiti, dá a letra dessa história.

“Antes o Haiti era muito bom, mas parece que alguns países pegaram a riqueza que ele tinha. E tem muito vandalismo. As pessoas têm mais medo de sair de casa do que de passar fome. Se você não der uma quantidade de dinheiro para os grupos criminosos, eles matam você.”

Com essa realidade, o David, pai do Joseph, abandonou o Haiti no começo dos anos 2010 e foi para a Venezuela, país que faz fronteira com o Brasil. Foi lá que Joseph nasceu 13 anos atrás.

Como também ali a situação começou a ficar muito difícil para essa família, em 2014 eles foram ao Brasil tentar, de novo, uma vida melhor.

Em Manaus, Joseph começou a frequentar a escola, e hoje ele domina o português. “Gosto muito de estudar, mas sou melhor em matemática. Nunca tiro nota baixa: é sempre de 7,5 para cima”, conta ele, que agora estava mergulhand­o no complicado mundo das frações.

Ainda que tenha saído do Haiti, a família do Joseph precisa ajudar sua avó, que ficou no país. Mas enviar dinheiro para ela do Brasil tem ficado cada vez mais caro, e David, que trabalhava vendendo frutas, já não conseguia mais cuidar dos filhos e ajudar a mãe.

Foi então que, mesmo depois de fazer tantas mudanças, essa família decidiu que faria mais uma: sairia do Brasil e iria aos Estados Unidos para, de novo, tentar uma vida melhor.

Essa floresta que Joseph, suas irmãs e pais cruzaram, está no meio do caminho entre o Brasil e os Estados Unidos, mais precisamen­te entre a Colômbia e o Panamá. Mesmo ela sendo tão perigosa, cada vez mais pessoas como a família de Joseph a estão cruzando.

Durante o ano passado, 520 mil passaram pelo Darién. Chamamos eles de “migrantes”, já que estão deixando seu país de origem em busca de algum outro país para ser sua nova casa. Muitos são crianças.

Pelo menos 113 mil menores de idade passaram pela floresta em 2023. É como se a cada cinco pessoas que a cruzassem, uma fosse uma criança, como Joseph Mathias e suas irmãs.

Depois de enfrentar tudo isso, o Joseph estava no Panamá, em um abrigo para aqueles que saem da floresta. Ele e a família ainda tinham um longo caminho pela frente até os Estados Unidos, mas esse estudante de 13 anos já tinha muitos planos.

“Quero voltar para a escola e aprender o idioma, o inglês. Acho que vou começar a aprender pelo aplicativo Duolingo. Na pandemia eu já aprendia inglês lá, e era muito bom.”

Para não esquecer tudo que aprendeu na escola nestes meses em que estava longe da sala de aula para viajar com a família, ele carregava na mochila seu caderno com as principais anotações das matérias. Algumas folhas acabaram molhando no rio da floresta.

“Antes a minha letra não estava tão boa, mas todos os professore­s disseram que melhorei”, conta, orgulhoso.

TODO MUNDO LÊ JUNTO Texto com este selo é indicado para ser lido por responsáve­is e educadores com a criança

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Lalo de Almeida/folhapress O venezuelan­o-brasileiro Joseph Mathias, 13 anos, segura no colo a irmã Rebeca, 4, no Panamá
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