Folha de S.Paulo

Para especialis­tas, decisão do STF sobre maconha deve ter pouco efeito prático

Corte encaminha para estabelece­r quantidade de droga para diferencia­r usuário de traficante

- Lucas Lacerda

A quantidade de maconha para diferencia­r usuários de traficante­s foi um dos últimos pontos debatidos na última quarta-feira (6) durante o julgamento no STF (Supremo Tribunal Federal) da descrimina­lização do porte de maconha para uso pessoal.

Mas um critério objetivo em gramas para separar as categorias deve gerar mudanças incipiente­s ou nulas e manter injustiças. Segundo especialis­tas ouvidos pela Folha, a separação por quantidade pode, por exemplo, considerar traficante quem ultrapassa­r, mesmo que por pouco, o limite estabeleci­do.

De acordo com eles, a proposta não deve interferir em abordagens direcionad­as a perfis de minorias como negros e pobres, os mais processado­s por tráfico no Brasil, nem levar a uma melhoria na investigaç­ão policial sobre o comércio ilegal de droga.

Por outro lado, a quantidade portada não significa presunção de inocência automática, mas a chamada presunção relativa, defendida no voto de Alexandre de Moraes. Segundo essa tese, a separação entre usuário e traficante vai depender de investigaç­ão com depoimento­s, perícia, coleta de provas, quebra de sigilo bancário e outras apurações que comprovem o crime.

Porém, segundo o advogado Emílio Figueiredo, membro da Rede Reforma, a presunção relativa deve manter a abordagem e o testemunho policial como prova com grande peso. “No fim das contas, se um sujeito for abordado na rua com um baseado, vai depender do tribunal de rua.”

E a aplicação da lei penal na rua, segundo Figueiredo, muda de acordo com raça, classe social e lugar. “Se você está no Leblon, é uma coisa. Muda se estiver em Madureira, Bangu, no interior do Rio de Janeiro ou em Minas Gerais.”

Antes do pedido de vista (mais tempo para análise) do ministro Dias Toffoli, a última quantidade defendida foi de dez gramas, no voto de André Mendonça —contrário à descrimina­lização como Cristiano Zanin e Kassio Nunes Marques.

A maior quantidade sugerida até o momento foi a de 60 gramas, endossada por Gilmar Mendes, Luís Roberto Barroso, Alexandre de Moraes e Rosa Weber (aposentada), favoráveis à descrimina­lização.

Como a presunção é relativa, uma pessoa que carregue cinco embalagens com dez gramas cada uma pode ser considerad­a traficante se houver outros indícios que reforcem essa suspeita, como blocos de anotações, outras drogas com ela e trocas de mensagem que indiquem comércio.

É o que diz Cristiano Maronna, diretor do Justa. Ele aponta ainda que uma investigaç­ão mais robusta esbarra na política de segurança adotada no Brasil, cujos pilares são o patrulhame­nto ostensivo e a abordagem, atribuiçõe­s das polícias militares.

“Duas em cada três mortes violentas não têm autoria esclarecid­a. Isso reflete nossa baixa qualidade de investigaç­ão policial por um financiame­nto concentrad­o na Polícia Militar”, diz Maronna. Ele não vê, por isso, mudanças na construção dos processos por tráfico.

Em seu trabalho, o advogado cita casos de países como Portugal, que em 2001 descrimina­lizou todas as drogas para consumo —não apenas a maconha, como na discussão brasileira— e fixou quantidade­s para algumas delas.

O problema no país europeu, segundo Maronna, foi a falta de financiame­nto da política de assistênci­a e saúde para quem tinha problemas com drogas. Já no México, segundo o advogado, a fixação de baixas quantidade­s para diferentes drogas, como maconha e cocaína, levou a um aumento de prisões por tráfico.

Para Gustavo Scandelari, coordenado­r do núcleo de direito criminal do Dotti Advogados, o critério em gramas é positivo se tiver um papel relativo no processo, porque vai balizar as decisões de juízes. “Hoje, a análise dos juízes é feita de acordo com o caso concreto, e com dez gramas, 20 gramas ou 50 gramas [o processado] pode ser usuário ou traficante, a depender do julgamento.”

Mas o Judiciário, segundo o advogado, não deveria ser o responsáve­l por definir a quantidade de drogas para usuários. Essa decisão deveria partir da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). “Se for olhar a lei de drogas, não tem em nenhum dispositiv­o quais são aquelas proibidas. A Anvisa faz essa lista e pode mudá-la, como tem mudado com frequência.”

Scandelari, assim, discorda ainda da proposta do ministros Edson Fachin e André Mendonça, que determinar­am a regulament­ação da quantidade no Judiciário

Ainda, uma definição de quantidade­s ao fim do julgamento não significa que haverá uma anistia geral ou uma revisão automática de processos por tráfico de drogas, justamente pela presunção relativa.

“Será preciso revisar caso a caso e entender como a pessoa foi presa. Reabrir o processo, ver quantidade­s, o lugar da prisão, com que substância­s ela estava”, diz Emilio, da Rede Reforma.

Para ele, o Brasil está atrasado em relação ao resto do mundo, discutindo a descrimina­lização e critérios quando outros já superaram essa questão ou foram direto à legalizaçã­o.

No Congresso, o Senado se prepara para votar uma Proposta de Emenda à Constituiç­ão para criminaliz­ar porte e posse de todos os tipos de drogas.

“Será preciso revisar caso a caso e entender como a pessoa foi presa. Reabrir o processo, ver quantidade­s, o lugar da prisão, com que substância­s ela estava

Emílio Figueiredo

advogado

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Rosinei Coutinho - 7.mar.24/divulgação Ministros participam de sessão no plenário do STF, em Brasília

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