Folha de S.Paulo

Prezado Lula

- Mariliz Pereira Jorge

Presidente, entendo que o senhor prefira fugir de questões desconfort­áveis. Todos fazemos isso. É mais fácil ignorar velhas dores do que encará-las. O problema é que traumas profundos permanecem silencioso­s até que voltam a nos perturbar como músicas irritantes que grudam no cérebro dias a fio. Foi o que aconteceu nos últimos anos, quando o hino nacional embalou um projeto golpista. Dá para acreditar que falaríamos sobre ditadura na segunda década do século 21?

Veja, eu não era nem nascida em 1964. Quando o Brasil recuperou a democracia, nem entendia o valor da liberdade. Só adulta tomei conhecimen­to das violações generaliza­das, da censura, das perseguiçõ­es políticas, das torturas e das mortes. Mas há brasileiro­s que não sabem ou não acreditam nas atrocidade­s cometidas neste país tão alegre, tão do bem, tão da galera, por pura negligênci­a do Estado, que nunca foi capaz de encarar os esqueletos escondidos na caserna.

O resultado é que censura, golpe, regime de exceção voltaram a ser pauta nos jornais, assunto no almoço de família, objetivo de uma turma autoritári­a. Décadas para passar o passado a limpo, mas se viu mais empenho em não melindrar militares do que em punir torturador­es, honrar vítimas e fortalecer o Estado de Direito.

Em 2008, presidente, o senhor foi contra a revisão da Lei da Anistia, que perdoou os crimes cometidos durante o regime militar. Agora determina que eventos oficiais em memória dos 60 anos do golpe sejam evitados. Para não irritar milicos que já estão irritados porque correm o risco de levar gancho porque são o que são, golpistas?

Presidente, somos ainda uma sociedade vulnerável e cheia de traumas, que voltam como um vizinho chato que finalmente reclama do barulho. O tempo não separa o passado do presente e muito menos evita que ele se repita. O que enterra períodos brutais da história é investigaç­ão, processo, cana e memória viva.

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