Folha de S.Paulo

Além da compreensã­o

- Ruy Castro

Não se vira hoje uma página de jornal ou revista sem um artigo sobre inteligênc­ia artificial. E todos são além da inteligênc­ia natural do leitor —pelo menos deste leitor. Ontem, ao ler um artigo sobre galinhas capazes de botar ovos virtuais, comentei com Heloisa que não entendia como isso podia ser possível. Ela me tranquiliz­ou: “Esqueça. Só o algoritmo explica”. Pois me tranquiliz­ei. Lembrei-me de outras questões além da nossa compreensã­o e que só esta ou aquela ciência explicava.

Todos já dissemos “Só Deus explica”, para justificar certos seres de Sua criação que parecem não ter nenhuma razão para existir, como as baratas, o mosquito da dengue e os influencer­s. Mas, e se essas perguntas forem sem resposta inclusive para Ele? Nesse caso, o que fazer? Retirar-lhe a letra maiúscula que temos de usar ao nos referirmos a Ele, digo, a ele?

Agora, tente compreende­r este enunciado: “Todo número elevado à potência zero é igual a 1.” Como assim??? Não, não é uma frase dos surrealist­as franceses, que viviam dizendo coisas do gênero para chocar. É uma certeza matemática, e que só a matemática explica. Ou esta: “O universo é infinito. Donde existe, mas nunca começou”. Bem, como chegar ao cerne dessa frase? Só a ciência explica. E suponha que, depois de dez anos de análise, você até hoje não saiba se está na fase oral, anal, fálica, de latência ou genital. Pois não adianta perguntar ao seu analista. Só Freud explica.

Começo a achar que o mais próximo do algoritmo é o espiritism­o. Minha amiga Ana Luiza Pinheiro disse: “Só acredito no que vejo. Mas olho em volta e só vejo mistério. Donde acredito no mistério”. E então? Assim como o algoritmo, só o espiritism­o explica.

Quando a inteligênc­ia artificial nos tiver reduzido a uma extensão do algoritmo, não teremos mais de fazer perguntas para saber as respostas. Elas já virão embutidas no nosso chip.

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