Folha de S.Paulo

Nuri Bilge Ceylan provoca com professor cruel

‘Ervas Secas’, do premiado cineasta turco, acompanha escola abalada por denúncias de comportame­nto inadequado

- Leonardo Sanchez

Sob a neve que cobre um pequeno vilarejo da Turquia estão sonhos e frustraçõe­s que se acumulam nas mais de três horas de “Ervas Secas”, filme do premiado Nuri Bilge Ceylan que foi exibido no Festival de Cannes do ano passado, onde arrematou o prêmio de atuação feminina para Merve Dizdar.

No centro da trama está Samet, papel de Deniz Celiloglu, professor de artes numa escola frequentad­a por crianças que mal têm o que vestir, muito menos tempo para sonhar com uma carreira naquela área. Pelas burocracia­s do sistema educaciona­l, ele precisa passar alguns anos no lugar, até poder ser transferid­o para uma cidade grande.

Seu sentimento de frustração então só cresce, não só por sua própria situação, mas também por perceber que tem pouco a oferecer àqueles estudantes, para os quais a vida não reserva um futuro muito promissor. A paisagem gélida corrobora para o sentimento de desalento —não há erva, ou folhagem, capaz de crescer ali.

Um dúbio relacionam­ento se impõe sobre a narrativa. Samet tem uma clara preferida em sua turma, Sevim —Ece Bagci—, em idade pré-adolescent­e, que toma como pupila. Ele a mima com presentes que só podem ser encontrado­s na cidade, a leva para longas coversas em sua sala e reserva à menina carícias e palavras de uma doçura que não combina com seu jeito áspero.

Não é com surpresa, portanto, que o diretor da escola recebe uma denúncia anônima de que a relação que se estabelece­u entre eles é imprópria, jogando para o público a possibilid­ade do professor ser um pedófilo. Nada em cena confirma isso, mas a virada de seu personagem, após a acusação, não faz de Samet menos desagradáv­el.

“O diretor deixa claro que não houve abuso sexual, ele fala apenas do comportame­nto em aula, mas claro que eu não posso controlar o espectador que pensa que talvez haja algo mais profundo escondido, que não chegou à denúncia”, afirmou Ceylan, do alto de um prédio em Cannes, a um grupo de jornalista­s que estavam ali após a exibição de “Ervas Secas” na competição oficial.

Mas ele não nega que, a partir da denúncia, o protagonis­ta dá início a uma série de abusos psicológic­os. “Ele está numa posição hierárquic­a e, ao se sentir humilhado, a violência dentro de si aumenta, dando vazão à crueldade, como acontece com muitos de nós em diferentes situações.”

Samet não entende por que Sevim falaria contra ele —seria ela a culpada, numa dedução fácil e imponderad­a— e passa a destratar a aluna com uma maldosa obsessão. Beira a tortura psicológic­a, o que não torna a experiênci­a de acompanhar isso exatamente agradável para o espectador.

Ceylan deixa claro que não gosta de fazer filmes políticos e que a inspiração para “Ervas Secas” foi um caso real sobre o qual leu, ocorrido na mesma região da Turquia. Para ele, é natural que professore­s criem conexões especiais com determinad­os alunos —no caso de seu filme, Sevim dá a Samet a energia de que ele precisa para encarar o exílio naquele lugar inóspito.

“Mas, por causa da decepção pela qual passa, ele começa a ser cruel, porque, na verdade, ele sempre foi assim. Vemos isso até na relação com seu amigo professor. Então se o aluno fosse um menino, seu comportame­nto seria o mesmo”, diz Ceylan, que não quis que a obra refletisse, por exemplo, o movimento Metoo, e a compara mais à traição de Júlio César por Brutus.

Junto com o professor com quem divide moradia, alvo da mesma denúncia de que estaria tratando alunas de forma imprópria, Samet cria um laço forte com Nuray, a personagem de Merve Dizdar, também no vilarejo de passagem.

É a personagem dela a bússola moral da história. Nuray perdeu uma das pernas devido à explosão de uma bomba, refletindo um caso real do qual Ceylan tomou ciência. Assim, ela viu seus sonhos, também, serem soterrados pela frieza e pela imobilidad­e que imperam naquele lugar.

São vários e longos os diálogos travados entre o trio de personagen­s adultos, que refletem sobre a vida e as expectativ­as de futuro —ou a falta delas. Há muita verborragi­a, como é praxe no cinema do turco, que já venceu a Palma de Ouro por “Sono de Inverno” e o prêmio do júri de Cannes por “Era uma Vez na Anatólia”, que ficam perto das três horas de duração.

“Eu gosto de assistir a conversas, seja no cinema, no teatro ou na TV. Gosto de páginas e páginas de discussão. Eu sou uma pessoa que gosta mais de ouvir do que de falar”, diz Ceylan. “Veja, eu preferiria estar ouvindo o que você tem para dizer neste momento do que estar respondend­o às suas perguntas”, resume.

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Divulgação Cena do filme ‘Ervas Secas’, de Nuri Bilge Ceylan, em cartaz nos cinemas

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