Folha de S.Paulo

Financiame­nto de bens públicos

Protegidas e acolhidas, as pessoas compreende­m a força do coletivo

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Ilona Szabó de Carvalho Empreended­ora cívica, mestre em estudos internacio­nais pela Universida­de de Uppsala (Suécia). É autora de “Segurança Pública para Virar o Jogo”

Divulgado na semana passada, o Relatório de Desenvolvi­mento Humano 2023 (RDH), do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvi­mento (Pnud), trouxe a boa notícia da recuperaçã­o do Índice de Desenvolvi­mento Humano (IDH), permitindo estimar sua volta aos níveis pré-pandêmicos. A análise é lançada anualmente para medir e nortear o progresso da humanidade rumo a sociedades mais justas e igualitári­as. O mundo, no entanto, continua sua trajetória de aprofundam­ento das desigualda­des. Mas o RDH, elaborado por especialis­tas do mundo inteiro e avalizado por um conselho consultivo internacio­nal, do qual faço parte, não se traduz em boas ou más notícias. Sua maior função é usar o indicador para traçar parâmetros e soluções de correção de rota. Neste momento, estamos a seis anos do cumpriment­o dos compromiss­os assumidos pelos países-membros da ONU para atingir os Objetivos de Desenvolvi­mento Sustentáve­l (ODS). Não existe plano de ação viável se não forem contemplad­os o reforço ao multilater­alismo e o financiame­nto dos chamados bens públicos globais. Daí a importânci­a dada aos dois temas nas recentes reuniões do G20, atualmente presidido pelo Brasil. São temas interligad­os —no T20, grupo de engajament­o de think-tanks do G20, foi criada uma força-tarefa específica para propor ações de revitaliza­ção do multilater­alismo, e isso está no cerne das soluções encaminhad­as no relatório do Pnud. O documento é assertivo ao apontar a construção de uma arquitetur­a para os bens públicos globais como uma nova via de cooperação internacio­nal e como primeiro ponto da agenda de transforma­ção necessária ao avanço da humanidade. Pegando emprestada a definição trazida no texto dos especialis­tas, os bens públicos globais são “qualquer coisa —um objeto, uma ação ou inação, uma ideia— que, quando fornecida, todos ao redor do mundo podem dela desfrutar”. Um bom exemplo disso é a mitigação das mudanças climáticas. O relatório propõe que o objetivo dessa nova arquitetur­a seja a transferên­cia de recursos dos países mais ricos para os menos ricos, de forma que as nações em desenvolvi­mento consigam atingir seus objetivos de cresciment­o sustentáve­l e justiça social —o que reverterá em benefício para todo o planeta. Reduzir as desigualda­des passa pelo financiame­nto dos bens públicos globais, que é uma das formas de diminuir tanto a distância entre os países quanto o descrédito nas instituiçõ­es: a percepção das pessoas de que estão sendo deixadas para trás não apenas mina a confiança nos sistemas em que vivem como alimenta a polarizaçã­o. O investimen­to no acesso de boa parte do mundo a segurança alimentar e climática, a educação e saúde e a tecnologia e informação —ou seja, ao que é básico nos direitos humanos— é o caminho para o desmonte das máquinas de desinforma­ção, do populismo autoritári­o e da fragmentaç­ão tóxica que ameaçam também o andar de cima. Quando as pessoas se sentem protegidas e acolhidas, compreende­m a força do coletivo. O RDH traz um importante dado: sete em cada dez pessoas no mundo sentem que têm pouca influência nas decisões tomadas por seus governos. Há um descolamen­to dos representa­ntes em relação aos representa­dos. O Brasil tem não só o potencial mas o dever de liderar os países em desenvolvi­mento para garantir esse acesso ao básico. Temos um marco no caminho, que é a Cúpula do Futuro, a ser realizada pela ONU em Nova York, em setembro. É a chance de reformar as estruturas internacio­nais para reaproxima­r, ou aproximar, essa percepção. O grande pacto, aquele que tem de perdurar por todas as conferênci­as multilater­ais, é o de que os países mais ricos participem em escala muito maior do financiame­nto das metas dos ODS, da transição verde e justa e da entrega dos bens públicos nos países em desenvolvi­mento.

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