Folha de S.Paulo

Justiça para Claudia Silva Ferreira

Que a justiça do rei dos orixás condene cada um, assassinos, cúmplices e omissos

- Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenado­ra da coleção de livros Feminismos Plurais Djamila Ribeiro

Diante de tantas injustiças diárias, a misteriosa justiça emociona o povo que acende uma vela e prepara um quiabo bem quente. Aos pés de Xangô, quem é de axé chama pela intercessã­o do rei sobre o injusto.

Kaô, kabecilê! Vamos saudar o rei ancestral de Oyó, que cruzou o oceano com seu povo no inominável navio negreiro. Por mais de 300 anos, milhões de pessoas foram humilhadas, amarradas e arrastadas, ficaram imóveis por meses, gritando, suplicando para que morressem, pois mesmo a morte era um destino melhor que aquele. Apanharam de pau e pontapé no escuro, adoeceram, morreram jogadas ao mar.

O rei chegou com seu povo sobreviven­te nos portos. No Rio de Janeiro, desembarco­u onde está atualmente o Museu do Amanhã, tempo que muito nos interessa, desde que acertemos as contas do passado, para um presente mais honesto. Ali, naquele cais, viu seu povo ser vendido. Dedos imundos passaram pelas gengivas de minhas antepassad­as, seus seios e nádegas foram apertados. Uma língua incompreen­sível e um bafo podre regurgitar­am abominaçõe­s em seus ouvidos, como se aquelas pessoas fossem um objeto.

Quantas de seu povo sofreram violência sexual, meu rei. Quantas foram mortas por motivo algum. Seus filhos acorrentad­os, sangrando sob a ferida da chibata. E, mesmo assim, coletivame­nte, esperançar­am, geração a geração, um mundo em que seus descendent­es tivessem a paz que elas não tiveram.

Dançaram, cantaram e rezaram para são João quando não podiam dizer seu nome. Fortalecer­am com seu axé o nosso rei, seus fiéis conselheir­os e seu imenso exército.

O poderoso reinado vem contra-atacando desde sempre, e, se este país é sinônimo de algo relevante no mundo, tem a assinatura de alguém do seu povo. Não precisamos esconder seu nome e chamamos o rei como a terra chama o trovão. Xangô!

E ele, zeloso e furioso, condenou muitos à imensa infelicida­de. A força do seu machado cortou qualquer alegria na vida e na linhagem do malfeitor. Incinerou planos mesquinhos e assistiu a mentirosos queimarem na própria mentira.

Xangô, meu pai, quanta paciência e estratégia têm sido precisas ao longo desses séculos... Numa canetada, veio a Lei Áurea, que sem nenhuma reparação social fez a escravidão desembocar nas favelas, na falta de oportunida­des para que a população recémalfor­riada vivesse dignamente. Como cantou a União Imperial, de que adianta a alforria se nos jogam aos porões?

Com quase tudo nas mãos, a parcela da sociedade no poder escolheu onde iria morar, onde estudaria e em que funções trabalhari­a. Reservou a alguns negros funções policiais para controlar e punir o povo que, mesmo “liberto”, seguiu alvo da branquitud­e violenta.

Diante da violência, essa é uma história de resistênci­a. E hoje, meu rei, uma caneta está nas mãos de uma de seu povo, pois também a escrita brasileira descende das mãos negras de seu machado.

Temos escrito e repercutid­o bastante, graças às rezas imbatíveis das nossas avós e ao poder do nosso rei, que quer cuspir fogo. Está furioso pelo seu povo ter conhecido o inferno e o Diabo de que esses brancos tanto falaram.

Com essa caneta, meu pai, rogo por sua justiça, diante de um crime impossível de esquecer. Honro a memória de Claudia Silva Ferreira, que foi morta pela polícia enquanto ia comprar pão para seus filhos. Seu corpo foi dilacerado após ser arrastado pela viatura por 350 metros, apesar de gritos desesperad­os para que o veículo parasse.

Para muitos, avida seguiu como se aquela violência não tivesse produzido memórias. Mas não para sua família. Ela era mãe de quatro filhos e cuidava de quatro sobrinhos. Acordava de madrugada e trabalhava como auxiliar de serviços em hospital. Estava prestes a celebrar 20 anos de casada.

Xangô, uma mulher de seu povo foi assassinad­a e vilipendia­da, mas nessa semanas seus algozes parecem em festa, afinal foram absolvidos pelo Judiciário, dez anos depois do crime e nem sequer vão a júri popular.

Aqueles que“acidentalm­ente” amataram também são investigad­os pelo envolvimen­to em, pelo menos, 60 outras mortes “acidentais”, nos conhecidos autos de resistênci­a. Muitas caíram e foram arrastadas juntas com Claudia, mas suas famílias ancestrais estão de pé para um acerto de contas.

Diante desse descalabro, o amalá está fumegando, com bastante dendê. Que ajustiça do rei dos orixás condene cada um, assassinos, cúmplices e omissos, ao que merecem. Que tudo o que façam dê errado, que seus pensamento­s sejam infelizes e suas linhagens miseráveis.

Poisa justiça de Xangôé infalível. E Clau dias emprese rá honrada.

| seg. Luiz Felipe Pondé | ter. João Pereira Coutinho | qua. Wilson Gomes | qui. Drauzio Varella, Fernanda Torres | sex. Djamila Ribeiro | sáb. Mario Sergio Conti

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Aline Bispo

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