Folha de S.Paulo

Veto a eventos sobre o golpe é gesto de boa vontade, diz Nilmário

Ex-ministro dos Direitos Humanos e atual assessor da pasta defende Lula e afirma que sua agenda de atos está mantida

- Como está a situação da Casa da Morte e da Usina Cambahyba?

Nilmário Miranda está como a ostra entre o rochedo e o mar.

Ex-militante contra a ditadura, foi preso e torturado. Em seu primeiro mandato, Lula (PT) o nomeou ministro de Direitos Humanos, cargo que ocupou de 2003 a 2005. Hoje ele é chefe da Assessoria Especial de Defesa da Democracia e História e da Verdade da pasta que já comandou, agora liderada por Silvio Almeida.

Militantes de direitos humanos e familiares de mortos e desapareci­dos têm criticado fortemente o governo (sobretudo Lula) pela atuação no setor. Tanto pela demora em recriar a Comissão de Mortos e Desapareci­dos quanto pelas recentes declaraçõe­s de Lula de que a ditadura “faz parte da história” —condenadas num manifesto de 150 entidades— ou ainda pela ordem do presidente para que órgãos do governo não lembrem os 60 anos do golpe, em 31 de março —o que forçou o Ministério dos Direitos Humanos a cancelar um ato já programado.

Ex-deputado federal pelo PT de Minas Gerais, Nilmário tem ouvido com atenção as críticas e diz respeitá-las. Mas procura compreende­r as motivações de Lula —pondera que militares estão sendo investigad­os e houve desmilitar­ização do governo— e enumera ações do ministério.

Entre os projetos, está a transforma­ção da Casa da Morte, centro de tortura durante a ditadura, em Petrópolis (RJ), num memorial — iniciativa que chegou a ser anunciada em 2012, mas nunca saiu do papel.

Autor, com Carlos Tibúrcio, do livro “Dos Filhos deste Solo”, importante inventário sobre mortos e desapareci­dos da ditadura, Nilmário está finalizand­o uma edição resumida da obra, que ganha um terceiro autor, o poeta e também ex-preso político Hamilton Pereira, o Pedro Tierra, com quem trabalha no Ministério dos Direitos Humanos.

Como explicar a determinaç­ão do presidente Lula para que órgãos do governo não façam atos para lembrar os 60 anos do golpe, e como o senhor a recebeu?

O presidente decidiu, nós vamos seguir. Mas 95% dos atos são de entidades e outros entes federativo­s, como a Prefeitura de Belém, eu vou lá, aquela marcha [entre Rio e Juiz de Fora] eu vou participar, estou indo [em um evento] na ABI [Associação Brasileira de Imprensa]. Então a minha agenda está toda mantida.

O governo não pode impedir atos, e acho que nunca passou pela cabeça do presidente isso. Apenas ficou uma história mal interpreta­da, digamos assim.

Houve um acerto dele com o Múcio e os comandante­s militares?

Eu não faço críticas ao presidente. Ele é o técnico, ele escala o time, define a tática. É assim que funciona. Ele fala que está sendo feita uma coisa sem precedente­s. O pessoal do 8 de janeiro está sendo processado, investigad­o, punido. Inclusive gente da alta oficialida­de da Polícia Militar e das Forças Armadas. Já está sendo feito o principal para garantir a democracia.

Na cabeça dele, é um gesto de boa vontade. O Lula é assim. Se ele quisesse barrar essa pauta, não teria chamado o Silvio [Almeida para ser ministro], nem eu estaria aqui. Eu fui ministro [de 2003 a 2005] por causa dessa pauta. O Paulo Vannuchi me sucedeu, a pauta era a mesma, revisão dos crimes da ditadura etc. Ele sempre fez o que tinha que fazer. Não acho que vai mudar isso também não. Como disse o ministro, nós temos políticas de Estado sobre mortos e desapareci­dos.

Mas por que a Comissão de Mortos e Desapareci­dos ainda não foi reinstalad­a e a Comissão de Anistia não funciona como outrora?

A Comissão de Anistia já fez mais de 80 julgamento­s no ano que passou e vai aumentar enormement­e neste ano, e nosso projeto é até 2026 julgar todos os casos. Anistia não é coisa para durar a vida inteira. Há no governo uma simpatia com essa ideia de a gente acelerar. Como também teve seis anos de interrupçã­o aí, com o período Temer e o período Bolsonaro —que não só não julgou como ajudou a desmontar a comissão—, nós vamos acelerar.

E a Comissão de Mortos e Desapareci­dos, como se explica que depois de mais de um ano não tenha sido reinstalad­a ainda?

Tem duas respostas para isso. Primeiro, quem decide é o presidente, ele que é o senhor da oportunida­de, o senhor do tempo. Segundo, ele deu declaraçõe­s mostrando que está desmilitar­izando o governo, trocou militares da Abin [Agência Brasileira de Inteligênc­ia], tirou de ministério­s militares fora da função.

Nós estamos fazendo o que deve ser feito. Claro que defendemos a reinstalaç­ão da Comissão de Mortos e Desapareci­dos, mas o presidente é quem assina.

Qual é o balanço do trabalho da assessoria especial que o sr. chefia, o que foi feito e o que planejam?

No caso da Anistia, estamos organizand­o a comissão de cima a baixo e temos o projeto para julgar mais de 3.000 casos. A proposta que discuti com o Conselho, com a presidente e depois com o ministro é encerrar os trabalhos em 2026, julgar todos os casos, não deixar nenhum. Estamos progressiv­amente reforçando a comissão.

Já chegou a ter no passado, quando eu fui da comissão, cem técnicos trabalhand­o só na análise de processos, hoje tem 12, 15. Agora vai ter concurso, nós estamos reforçando, usamos bastante estagiário­s, pessoas cedidas por outros órgãos, e para terminar tem que ter um incremento estrutural e financeiro.

Anistia não é para a vida inteira, e quanto mais distante do motivo que levou a pessoa a requerer a anistia, menos a sociedade participa. Na de Mortos e Desapareci­dos eu nunca parei um dia de trabalhar, independen­te de estar ou não instalada. Estamos trabalhand­o para recuperar os lugares de memória no país inteiro.

Tem uns 30 anos em que se fala em transforma­r a Casa da Morte em memorial. Lá em Petrópolis desde 2008 tem movimentos concretos para desapropri­ar a casa nesse sentido. Agora, a prefeitura protocolou uma ação de desapropri­ação, e fizemos um convênio com a prefeitura, ou seja, financiamo­s a desapropri­ação —que não chega a R$ 2 milhões.

Uma vez tendo a emissão da posse, a prefeitura fará um convênio com a Universida­de Federal Fluminense, que vai assumir e montar o memorial.

Na Usina Cambahyba [onde corpos de presos políticos foram incinerado­s], tem um assentamen­to de reforma agrária, o MST (Movimento dos Trabalhado­res Rurais Sem Terra) sabe daquele forno e sempre lutou para que fosse recuperada aquela história.

O assentamen­to do MST virou definitivo, mas na área de fazenda. Na área construída —uma parte virou ruína, mas ainda tem aquelas chaminés enormes—, nosso objetivo é fazer um memorial também, pedir que a Prefeitura de Campos dos Goytacazes faça um decreto de desapropri­ação, a gente levanta recursos para financiar. Já há um projeto de lei bem avançado na Assembleia do Rio de Janeiro para patrimonia­lizar.

Outra coisa que nós estamos discutindo é o caso do Dops [Departamen­to de Ordem Política e Social, órgão repressor da ditadura] do Rio. O prédio é da Polícia Civil, que quer fazer um museu, e nós achamos que tem que ser um memorial da democracia, como aconteceu em São Paulo.

Durante o século passado, lá tinha a Polícia Central —em 1912, a Polícia Central prendia sambistas por vadiagem. Na década de 1930, quando virou a polícia política, por lá passaram Graciliano Ramos, Nise da Silveira, Jorge Amado, Mário Lago, [Luiz Carlos] Prestes, Olga Benário, Carlos Lacerda. Quando a capital se mudou para Brasília, em 1962, passou a se chamar Dops.

O sr. está falando das ações e da importânci­a da preservaçã­o da memória, a cargo do setor sob tua chefia no ministério, e da importânci­a de lembrar para não esquecer. Como é que o sr., que é próximo do presidente e sempre militou na área dos direitos humanos, recebeu essa frase do presidente?

Eu falo o seguinte: o que foi feito por ele? Eu era da comissão de Mortos e Desapareci­dos, representa­nte da Câmara. E fiz um livro com Carlos Tibúrcio chamado “Dos Filhos deste Solo”, que conta a história de cada um dos 434 mortos e desapareci­dos. O Lula me chamou para ser ministro de Direitos Humanos. E convidou o Carlos Tibúrcio para escrever os discursos dele por oito anos. Depois que eu saí de lá, ele chamou Paulo Vanucchi, qual que era a pauta? Mortos e Desapareci­dos.

Ele nunca deixou de fazer as coisas. Eu compreendo perfeitame­nte o que o Lula está vivendo. Ele está entre duas situações. Quase houve um golpe no país, uma tentativa real de golpe. Então ele quer pacificar toda a relação com Exército, Marinha e Aeronáutic­a.

Já mexeu na Polícia Federal e na Polícia Rodoviária Federal para poder tirar extremista­s de lá. A gente sabe que ele fez uma mudança profunda na Abin, tirou centenas de militares. Depois da tentativa de golpe do 8 de janeiro, tá havendo indiciamen­to, denúncias, prisões, o que nunca houve no Brasil, é inédito.

Os que seriam os maiores atentados da história do Brasil ficaram impunes. Não se consumaram. O do caso do Gasômetro no Rio, o João Paulo Burnier ele só não cometeu o atentado, em que morreriam centenas de pessoas porque o Sérgio Macaco denunciou. E ele foi punido —o único punido foi o que denunciou.

No Caso Riocentro estava o mesmo pessoal da Casa da Morte. O capitão Machado, que estava ao lado de Sérgio Rosário, não só jamais foi interrogad­o, mas foi transferid­o para Brasília e virou instrutor de cadetes. Agora imagina, um cara que ia fazer um atentado daquele virou instrutor de cadetes. Todos eram protegidos.

“Na cabeça dele [Lula], é um gesto de boa vontade. O Lula é assim. Se ele quisesse barrar essa pauta, não teria chamado o Silvio [Almeida para ser ministro], nem eu estaria aqui

Eu compreendo perfeitame­nte o que o Lula está vivendo. Ele está entre duas situações. Quase houve um golpe no país, uma tentativa real de golpe. Então ele quer pacificar toda a relação com Exército, Marinha e Aeronáutic­a

 ?? Divulgação ?? Nilmário Miranda, 76
É jornalista pela UFMG (Universida­de Federal de Minas Gerais), com mestrado em ciências sociais. Na ditadura, integrou movimentos de base ligados à lgreja Católica e foi preso e torturado. Deputado federal pelo PT mineiro por cinco mandatos, foi ministro dos Direitos Humanos no primeiro governo Lula. É o atual chefe da assessoria especial de Defesa da Democracia, Memória e Verdade da pasta.
Divulgação Nilmário Miranda, 76 É jornalista pela UFMG (Universida­de Federal de Minas Gerais), com mestrado em ciências sociais. Na ditadura, integrou movimentos de base ligados à lgreja Católica e foi preso e torturado. Deputado federal pelo PT mineiro por cinco mandatos, foi ministro dos Direitos Humanos no primeiro governo Lula. É o atual chefe da assessoria especial de Defesa da Democracia, Memória e Verdade da pasta.

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