Folha de S.Paulo

O apodrecime­nto do Estado

Os bandidos do caso Marielle são doutores ou policiais

- Elio Gaspari Jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles “A Ditadura Encurralad­a”.

Desvendada a trama do assassinat­o de Marielle Franco, resulta que nela não havia um só bandido desorganiz­ado, daqueles que assaltam, roubam casas ou celulares. Um era chefe da polícia do Rio; outro, conselheir­o do Tribunal de Contas; seu irmão, deputado federal; o pistoleiro e seu motorista, ex-PMs. Essa casta não rouba carros, alguns usam veículos oficiais.

Pior: Marielle foi assassinad­a porque atrapalhav­a os negócios de grilagem de terras e as milícias dos irmãos Brazão. Novamente, os bandidos que mataram Marielle relacionav­am-se com o crime que age nas frestas da ausência do Estado, quer na barafunda fundiária, quer na exploração da falta de segurança pública.

Se existisse um sindicato do crime desorganiz­ado, ele protestari­a diante da concorrênc­ia desleal praticada pelos doutores e pelos policiais. Esse mesmo sindicato defenderia a classe contra a expansão de suas atividades criminosas. Se tudo isso fosse pouco, Marielle foi executada três semanas depois da presepada da intervençã­o militar na segurança do Rio, e o crime foi planejado pelo chefe da polícia civil do Rio, nomeado pelos generais que poriam ordem na casa.

Inicialmen­te pensou-se que o atentado era uma resposta dos criminosos convencion­ais demarcando o domínio do território. (O signatário caiu nessa.) Ilusão democrátic­a. Não havia bandidos avulsos no lance. Só bandidos articulado­s no aparelho estatal. Gente que defende seu mercado estimuland­o a repressão aos PPPP (pretos, pardos e pobres da periferia). Nela, as polícias matam pelo país afora, dizendo que são “suspeitos”.

Faz tempo, o assaltante Lúcio Flávio Vilar Lírio enunciou sua lei: “Polícia é polícia, bandido é bandido”. Ela nunca foi respeitada, mas a morte de Marielle Franco mostrou que o apodrecime­nto do Estado foi além. Ao longo de seis anos a engrenagem da segurança pública foi sabotada para proteger os criminosos.

Foi a entrada da Polícia Federal no caso que interrompe­u o processo de putrefação. Vale lembrar que um policial federal alertou os generais para a periculosi­dade do delegado colocado à frente da polícia do Rio. Não foi ouvido.

Naqueles dias um general foi a um quartel da PM e a tropa não lhe deu imediata continênci­a. Não desconfiar­am de nada. Achava-se que muita coisa se resolveria se fosse criado o instituto das autorizaçõ­es para invasão de domicílios. Pura demofobia.

De forma esparsa, a metástase do Estado fluminense repete-se em muitos outros. Até hoje, a reação do poder público tem oscilado entre a benevolênc­ia e as presepadas.

A crise da segurança pública não será resolvida por balas de prata, mas a Polícia Federal está aí, mostrando que, bem ou mal, resolve alguns casos que lhe chegam.

No início do século 20, os Estados Unidos tinham crime organizado, polícia corrupta e Justiça venal. Criado o Federal Bureau of Investigat­ion, o jogo virou. Seu diretor era um sujeito detestável, mas criou o FBI.

É palpite, mas se a execução de Marielle Franco tivesse capitulado um crime federal, a quadrilha que planejou e executou o crime não teria o atreviment­o de embaçar a investigaç­ão por seis anos. O respeito à autonomia constituci­onal dos estados serviu apenas para proteger bandidos encastelad­os no aparelho do Estado.

| dom. Elio Gaspari, Celso Rocha de Barros | seg. Deborah Bizarria, Camila Rocha | ter. Joel Pinheiro da Fonseca | qua. Elio Gaspari | qui. Conrado H. Mendes | sex. Marcos Augusto Gonçalves | sáb. Demétrio Magnoli

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