Folha de S.Paulo

Jogos proibidos, crimes permitidos Proibição do jogo do bicho fortalece o crime organizado, e este enfraquece a polícia

- Bernardo Guimarães Doutor em economia por Yale, foi professor da London School of Economics (2004-2010) e é professor titular da FGV EESP

O relatório da Polícia Federal sobre o assassinat­o da vereadora Marielle Franco aponta o envolvimen­to de autoridade­s, como o ex-chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro, com o crime organizado. A notícia não vai surpreende­r especialis­tas em criminolog­ia. Quem estuda o assunto entende que organizaçõ­es criminosas em geral dependem da colaboraçã­o de autoridade­s policiais. De acordo com o relatório da PF, os assassinos de Marielle e seus cúmplices dentro da polícia tinham ligações com chefes do jogo do bicho no Rio. A corrupção na polícia permite às organizaçõ­es criminosas o exercício de suas atividades, que podem ir muito além da exploração do jogo do bicho. É, portanto, um problema gravíssimo. O que fazer sobre esse problema? A resposta usual, há décadas, é que os bicheiros e seus cúmplices policiais precisam ser punidos e as atividades ilegais devem ser reprimidas. Não tem funcionado. Há décadas, anotadores de jogo do bicho vendem suas loterias pela cidade, enquanto os chefões aparecem nos desfiles de escolas de samba com status de presidente­s de empresas. A guerra de gângsteres entre os grupos organizado­s é retratada em jornais e documentár­ios para televisão. A polícia do Rio continua com a reputação de mais corrupção e menos efetividad­e do que gostaríamo­s. Daria para ser diferente? O problema inicial é o vício no jogo de azar. De acordo com a Organizaçã­o Mundial da Saúde, jogos de azar são um hobby sem grandes consequênc­ias para a maioria dos praticante­s, mas um vício com efeitos nefastos para muita gente. A proibição deve reduzir o volume de apostas, mas é difícil saber quanto. Se o jogo fosse legalizado, quanto a mais se gastaria com isso? Mais pessoas ficariam viciadas ou compromete­riam parte relevante de sua renda com o jogo? Quantas mais? Será que algumas passariam a jogar no bicho, mas parariam de comprar opções binárias ou outras loterias? O objetivo da proibição é reduzir o vício. Os custos da proibição usualmente apontados incluem a perda de arrecadaçã­o com a ilegalidad­e (o jogo do bicho não paga imposto) e as dificuldad­es impostas a quem se divertiria apostando, sem compromete­r a renda. Esse caso recente traz à luz uma grave consequênc­ia da proibição: o aumento do poder do crime organizado e a consequent­e corrupção na polícia. O jogo do bicho é um negócio controlado por gângsteres que resolvem seus problemas com armas e assassinat­os; donos de lotéricas e sites de apostas utilizam métodos bem menos nocivos à sociedade para obter lucros. Em ambos os casos, as pessoas apostam dinheiro, ganham às vezes e perdem em média. O produto vendido é parecido. Os métodos são diferentes simplesmen­te porque uma atividade é legal e a outra não é. Legalizar o jogo tiraria uma altíssima fonte de renda das mãos dos gângsteres e as traria para empresário­s como os donos de lotéricas, sites de apostas ou sites que vendem opções binárias. Há muito o que criticar na atuação dos que vendem opções binárias. Ainda assim, tirar o jogo do bicho das mãos do crime organizado seria um benefício enorme da legalizaçã­o. Propostas desse tipo são às vezes discutidas no Congresso, mas o jogo do bicho continua forte, lucrativo e à margem da lei. O vício em jogos existe. O problema é que o remédio pode ser pior que a doença. Temos que optar entre o inseto e o inseticida. A proibição fortalece o crime organizado, então só faz sentido se as consequênc­ias da legalizaçã­o forem muito ruins.

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