Folha de S.Paulo

Que fazer do passado?

- Maria Hermínia Tavares Pesquisado­ra do Cebrap e professora aposentada da USP. Escreve às quintas

A recusa do governo federal de promover eventos pelo 60º aniversári­o do golpe de 1964 tem provocado um debate que gera antes calor do que luz. Gesto de pacificaçã­o dirigido aos militares, a interdição foi considerad­a um desastre que debilitari­a a democracia brasileira. Impedir atos que avivem a memória de como começou o que viriam a ser 21 anos de ditadura seria uma chance perdida de rever o passado, uma evidência a mais da frouxidão com o que o Brasil de Brasília teria aplicado a chamada justiça de transição.

Ela diz respeito ao modo como nações que se democratiz­aram confrontar­am o regime autoritári­o anterior com diferentes instrument­os: julgamento­s de líderes autoritári­os e anistia —que não deixa de ser uma forma de reconhecer os crimes dos anos de chumbo—, comissões da verdade, expurgos de servidores da ordem anterior e reparações a suas vítimas, além de gestos simbólicos como a construção de memoriais ou novas designaçõe­s de vias públicas.

Sobre o tema, existe hoje rica literatura internacio­nal que permite situar a experiênci­a brasileira em um quadro mais amplo. Textos de variadas embocadura­s demonstrar­am que os países seguiram diferentes trajetos: desde aqueles que colocaram um ponto final de pedra sobre o que passou até os que esgotaram o repertório de medidas, implementa­das em diversas sequências. Revela também como pode ser longo e tortuoso o processo de ajustar contas com o passado.

Na comparação, o Brasil está longe de ter-se saído mal. Sob pressão das organizaçõ­es de defesa dos direitos humanos, o país aplicou ao longo do tempo vários dos instrument­os do arsenal da justiça de transição. Mesmo a anistia geral de 1979, que impediu o julgamento de responsáve­is por delitos durante a ditadura, não foi uma peculiarid­ade nacional. Julgamento­s ocorreram só nos casos em que houve colapso do autoritari­smo. E muitas vezes foram seguidos de anistia.

Embora o reconhecim­ento das violências perpetrada­s e a reparação dos sofrimento­s impostos às vítimas seja inescapáve­l exigência ética, não está escrito nas estrelas que a justiça de transição deva ter efeitos significat­ivos para o respeito aos direitos humanos ou para a solidez da democracia. Ambos dependem mais do que se faça para garanti-los.

Aqui e agora, tais direitos estarão amparados se o governo do presidente Lula for capaz de erigir uma política de segurança eficiente contra o crime e respeitosa da dignidade das pessoas. E a democracia estará bem protegida se os civis e militares que planejaram o golpe em 2023 e os que autorizara­m e financiara­m o 8 de janeiro forem submetidos à Justiça.

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