Comissão de Anistia cobra Lula por silêncio sobre golpe
Presidente do órgão diz que não dá para ‘passar borracha’ em 1964 e no 8/1
Presidente da Comissão de Anistia desde o início do governo Lula, Eneá de Stutz e Almeida se diz decepcionada e surpresa com a postura do presidente a respeito dos 60 anos do golpe de 1964.
O aniversário da ditadura militar que durou mais de 20 anos no país é neste domingo (31), sob silêncio do Palácio do Planalto determinado pelo chefe do Executivo.
Lula proibiu atos em memória da data e disse, no mês passado, que não quer ficar “remoendo sempre” o passado e que está mais preocupado com os ataques golpistas de 8 de janeiro de 2023.
“Como é que o presidente acha que é importante falar sobre tentativa de golpe [8 de janeiro], mas não acha que é importante falar sobre golpe?”, disse à Folha.
Na comissão, a programação da efeméride foi mantida. Fará o primeiro julgamento de reparação coletiva da história do país, com pedidos de desculpas a dois povos indígenas e a um grupo de chineses.
Depois, sessão solene na Comissão de Legislação Participativa na Câmara homenageará Clarice Herzog, viúva do jornalista Vladimir Herzog, perseguida pela ditadura.
Ao lamentar a tentativa de passar em branco os 60 anos do golpe, Eneá faz um paralelo entre a fala de Lula e a do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) de “passar a borracha”.
“Ambos [Lula e Bolsonaro] falaram a mesma coisa, ‘vamos passar a borracha’, porque o que interessa é a pacificação. Não dá para passar borracha no passado, seja 60 anos atrás ou um ano atrás. A gente tem que enfrentar legado de violência e autoritarismo”, disse.
Acuado pelo avanço nas investigações em diferentes frentes da Polícia Federal, Bolsonaro convocou em fevereiro seus apoiadores na avenida Paulista para ato em seu apoio.
Ele fez discurso dizendo buscar a pacificação —”passar uma borracha no passado, buscar maneiras de nós vivermos em paz”— e pediu anistia aos presos pelo ataque golpista de 8 de janeiro de 2023.
Já Lula, dois dias depois, no programa “É Notícia”, da RedeTV!, foi questionado sobre os planos do governo para o aniversário de 60 anos do golpe militar, respondendo estar mais preocupado com 8 de janeiro do que com 1964.
A fala repercutiu mal entre familiares de vítimas da ditadura. Em nota divulgada no dia seguinte, mais de 150 entidades da Coalizão Brasil por Memória, Verdade, Justiça, Reparação e Democracia classificaram a declaração como “equivocada” e defenderam que tratar do golpe “não é remoer o passado, é discutir o futuro”.
O porta-voz do do grupo, Leo Alves, disse que o sentimento é de “traição”, porque consideravam-no um aliado.
Procurado, o Palácio do Planalto não se manifestou sobre as críticas de Eneá.
A lógica dos familiares encontra respaldo no que defende a presidente da Comissão da Anistia, que tratar de 1964 é trazer memória para garantir que não se repita.
Para Eneá, professora de direito da UnB (Universidade de Brasília), a fala de Lula também trouxe desapontamento, mas ela apresenta uma justificativa jurídica: diz achar que ele vê a lei como sendo de esquecimento e de autoanistia.
Nessa proposta, apaga-se o período e não é preciso discutir reparação. Mas ela também questiona esse posicionamento e defende que há brecha na Lei da Anistia para garantir que remanescentes do regime possam ser julgados.
“A lei de 1979 não é uma de autoanistia, é de memória.
Quem estava preso pôde ser libertado. Quem estava exilado pôde voltar. E quem não foi nem processado, pode ser processado. Porque os fatos não foram apagados. Então, não apagamos a história”, disse.
Eneá defende que enfrentar o passado autoritário do país e o que chama de tentativa de golpe, em janeiro de 2023, não são excludentes e considerou ótimo as Forças Armadas não terem embarcado no que chamou de canoa de ruptura institucional.
Mas defende que os militares peçam desculpas às vítimas do regime, sem medo de melindres. “Me parece que seria, inclusive, um momento bastante adequado, se as Forças Armadas pedissem desculpas por, lá atrás, terem embarcado nessa aventura golpista e terem participado da ruptura institucional”, disse.
A Comissão da Anistia adotou como protocolo, quando assegurou indenização às vítimas nos governos petistas, pedir desculpas em nome do Estado.
Mas, em 2017, no governo Michel Temer (MDB), mudou a postura do colegiado, que passou a ser mais restritivo nas concessões de reparações e interrompeu as desculpas oficiais. Em 2023, no governo Lula, o colegiado retomou a medida durante os julgamentos.